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Curiosidades

Projeto Cybersyn: a internet socialista do Chile na Guerra Fria

Em 12 de novembro de 1971, Anthony Stafford Beer entrou no Palácio de la Moneda, sede do governo do Chile. O consultor britânico, especialista em cibernética, tinha uma missão: convencer o presidente Salvador Allende a financiar um projeto ambicioso que prometia organizar a economia chilena com computadores e redes de informação – uma década antes de a internet vir a público.

Beer era um administrador de empresas ricaço, mas também fã de espiritualidade indiana, como tantos músicos da época – um misto de yuppie e hippie. Allende era um marxista convicto com traços elitistas, apreciador de empanadas e vinho tinto, e defensor de que todos deveriam ter acesso a esses luxos. O encontro era improvável, mas funcionou.

O projeto de Beer era radical: reformular a organização da máquina pública se inspirando na biologia e nas ciências da computação. Em seu plano, todas as indústrias do país transmitiriam informações em tempo real para a sede do Executivo em Santiago, onde um computador compilaria os dados e manteria um panorama atualizado da atividade econômica. Essa máquina também teria um simulador de cenários, que permitiria estudar o impacto de uma decisão do governo antes de implantá-la.

Assim como seu cérebro faz você sentir dor, cócegas ou arrepios em resposta aos estímulos e variações no ambiente ao redor, Beer imaginou que políticos e tecnocratas poderiam pilotar o Chile reagindo em tempo real aos acontecimentos. Faltou gasolina aqui? Trigo acolá? As exportações de cobre caíram? Transmitir essas informações instantaneamente é facílimo com os PCs e cabos de rede atuais, mas era uma ousadia política e tecnológica sem precedentes no mundo analógico e radicalizado da época. 

Um trunfo e uma inovação adicionais dessa ideia é que nem todos os dados precisariam chegar até Allende. Assim como o instinto de tirar a mão do fogo não vai até o cérebro – os neurônios da medula tomam essa providência antes, sem perguntar – o sistema de Beer seria dividido em camadas com diferentes graus de autonomia decisória. Cada fábrica e até cada funcionário de uma fábrica teriam uma chance de resolver os problemas antes de enviá-los para a próxima instância.

Allende, que era médico antes de ser político, reconheceu a inspiração anatômica dessas ideias, e acompanhou todo o discurso de ficção científica do britânico. Não só entendeu como gostou. Para ele, os computadores entrariam em cena como a espinha dorsal de uma ideia pouco convencional de planificação da economia, distante do autoritarismo sangrento da China e da União Soviética. 

<span class=”hidden”>–</span>Getty Images/ WikiMedia Commons/Montagem sobre reprodução
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Com a benção do presidente, Beer atravessou a rua até o bar do Hotel Carrera, onde um time de engenheiros jovens e empolgados esperava notícias sobre a reunião. O pesquisador bielorrusso Evgeny Morozov apelidou esse grupo de Santiago boys, título da série de podcasts que ele produziu sobre o assunto. É um trocadilho com os Chicago boys, um grupo de 25 jovens economistas, muitos deles pós-graduados na Universidade de Chicago, que liberalizou a economia do Chile sob a ditadura de Pinochet. 

Esse happy hour marcou o começo do Projeto Cybersyn, uma tentativa de planejamento econômico centralizado que uniria trabalhadores de chão de fábrica e burocratas palacianos em uma única rede. Entre goles de pisco e vinho, a equipe comemorou o início do sonho, talvez sem imaginar que estava entrando numa briga com a CIA e uma das maiores empresas de tecnologia da época. O Projeto Cybersyn nem tinha começado e já estava ameaçado.

Equilíbrio cibernético

Allende foi eleito em novembro de 1970. O político da coalizão Unidade Popular defendia que o Chile poderia ser o primeiro país a passar por uma revolução socialista sem violência e sem ignorar a Constituição. Ele se enxergava como uma terceira via para um mundo dividido entre o Ocidente capitalista e o blococomunista soviético. 

Como esperado de um marxista, Allende tinha a intenção de nacionalizar indústrias estrangeiras e transformar empresas privadas em públicas. Porém, se demonstrou cioso das instituições democráticas: não mexeu com o Congresso, o Judiciário e a liberdade de expressão. Ele gostava de chamar essa revolução desarmada de “via chilena para o socialismo”. Mas, no meio dessa via, tinha uma pedra. Ou melhor: algumas.

Entre as empresas que Allende queria nacionalizar estava a International Telephone & Telegraph (ITT). Essa multinacional americana era a provedora de linhas telefônicas para vários países. No Chile, sua subsidiária era a Chiltelco, que oferecia um serviço ruim e concentrado nos bairros ricos. 

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Era uma empresa com amigos poderosos em Washington, como o ex- -diretor da CIA John McCone. E sua sigla, na boca dos latinos de esquerda, significava outra coisa: imperialismo, traição e terror. A ITT apoiava a oposição e trabalhava de acordo com os interesses do presidente republicano Richard Nixon, que gostava da ditadura militar no Brasil e considerava conveniente entregar também o Chile nas mãos dasForças Armadas.

Apesar das negociações difíceis e da pressão do Tio Sam, Allende conseguiu nacionalizar 150 empresas, 12 delas entre as 20 maiores do país – inclusive a própria ITT. Para administrar tudo isso, nomeou o jovem Fernando Flores, de apenas 27 anos, para a Corporação de Fomento da Produção (Corfo). 

Flores fazia parte de um grupo de jovens engenheiros entusiasmados com o potencial da tecnologia para transformações sociais. Em busca de ajuda, foi a Londres perguntar a um de seus ídolos – o guru da cibernética Stafford Beer, que você já conheceu no começo da matéria – se ele indicava alguém para ajudá-lo na tarefa hercúlea. “Eu conheço um cara”, Beer respondeu. “Eu.”

A cibernética é a ciência de como controlar algo de maneira eficaz, seja um robô, um ser vivo ou um país (não por coincidência, a palavra grega kybernētēs também deu origem a “governo”). Para isso, Beer imaginava sistemas de pesos e contrapesos que resolviam probleminhas – as chamadas “instabilidades incipientes” – antes que se tornassem problemões. 

O exemplo mais simples é um termostato analógico. Ele se baseia no fato de que as coisas se expandem quando está quente e se contraem quando está frio. Quando um ar-condicionado esfria demais uma sala, uma pecinha de metal se contrai e interrompe a corrente elétrica. Assim que a sala esquenta, a pecinha se expande e religa o aparelho. Flores e Beer queriam implantar mecanismos desse tipo para manter a temperatura econômica do Chile sempre no patamar desejado [veja o gráfico abaixo].

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Infográfico, em fundo marrom, com retângulos em escala, representando a ideia do Cybersyn de organização econômica.
Assim como um ar-condicionado estabiliza sua temperatura com um termostato, sem exigir um comando externo, a ideia do Cybersyn era que cada nível de organização econômica tentasse resolver seus problemas sozinho antes de apelar para a instância superior.Arte/Superinteressante

Beer chegou à América do Sul no dia 4 de novembro, primeiro aniversário de um governo que não alcançaria o seu terceiro. Uma comitiva de pesquisadores e engenheiros veio atrás. O nome Cybersyn era ideia do britânico, uma mistura de “sinergia” e “cibernética” – mas, para facilitar a pronúncia em espanhol, o projeto ganhou o nome alternativo Sistema de Informaçãoe Controle (Synco). 

Internet artesanal

O primeiro desafio é que não existiam computadores no Chile. Ou melhor: quase não existiam. O governo tinha quatro mainframes, máquinas grandalhonas usadas para processar grandes volumes de informação. Vários ministérios disputavam o uso deles, e não era um sistema visionário chefiado por um gringo esquisito e um engenheiro moleque queteria prioridade. 

Comprar mais máquinas tampouco era uma opção: os EUA não venderiam tecnologia para um inimigo político. No final das contas, Allende separou uma das geringonças para a dupla: um Burroughs 3500, lançado em 1966. Ele ocupava uma sala e tinha menos poder de processamento que um laptop da Xuxa, mas seria o cérebro de um país.

Faltavam os nervos. Para esse fim, os engenheiros acabaram utilizando máquinas de telex esquecidas em agências dos correios. Esses aparelhos transmitiam mensagens escritas entre si com as mesmas redes usadas para telefonia – eram os avós do e-mail. Os telexes seriam espalhados pelas fábricas chilenas e ligados por mais de 5 mil km de cabos. A rede convergiria em Santiago e transmitiria dados essenciais constantemente. 

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O mastodôntico Burroughs rodava um software programado pela equipe chilena em parceria com especialistas britânicos. Com um pouco de estatística bayesiana, que usa resultados prévios de eventos para calcular probabilidades, o computador tentava prever tendências de comportamento econômico e avisar os responsáveis pelas empresas de possíveis problemas, além de criar situações hipotéticas para ajudar os humanos a tomar decisões.

A sala de controle do Cybersyn parecia um cenário de Star Trek e foi planejada pelo designer alemão Gui Bonsiepe. Não havia papéis nem mesas: os únicos móveis da sala eram sete cadeiras brancas com almofadas laranja, equipadas com botões, cinzeiro e porta–copos para uísque. Especialistas e trabalhadores se sentariam nelas para tomar as decisões importantes juntos. Nas paredes do espaço hexagonal, telas futuristas exibiam os dados econômicos coletados pelo mainframe em fluxogramas.

Futuro interrompido

Em outubro de 1972, 40 mil caminhoneiros chilenos entraram em greve. Várias empresas privadas, com financiamento da CIA, estavam por trás da paralisação – interromper a circulação de mercadorias pelo país era uma tática da oposição para gerar instabilidade política e preparar o terreno para o golpe militar desejado pelos EUA. Foi uma oportunidade de pôr o Cybersyn para jogo, mesmo incompleto.

Durante a greve, Beer estima que 2 mil mensagens foram transmitidas diariamente pela rede de telex. O governo conseguiu descobrir quais estradas estavam livres ou não em tempo real e planejar a distribuição de ajuda para áreas desabastecidas. Parece bobo agora que é possível fazer a mesma coisa por WhatsApp, mas foi mágico na época. O Frankenstein cibernético de Beer ajudou a salvar o governo, com uma mãozinha dos cordones industriales – grupos de voluntários apoiadores de Allende que organizavam o comércio local para lidar com o desabastecimento.

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Colagem, em fundo laranja, de fotos do General Pinochet, Richard Nixon, imagens de um protestos e um Tanque de Guerra.
<span class=”hidden”>–</span>Getty Images/ WikiMedia Commons/Montagem sobre reprodução

Allende visitou o protótipo da sala de comando no fim de 1972, e incentivou a equipe a deixar o sistema pronto até fevereiro de 1973. Não deu. Naquela altura, as nacionalizações e outras medidas de Allende já geravam inflação e desabastecimento, os boicotes da oposição continuaram com apoio dos EUA e a dupla Flores-Beer desanimou com a falta de recursos e a instabilidade política. 

A sala de operações foi construída, mas nunca usada. O software só rodou em testes – promissores, mas testes. Em maio de 1973, apenas 26,7% das indústrias nacionalizadas estavam inseridas no sistema do Cybersyn. Essa foi a maior porcentagem conseguida. 

Uma nova greve começou em agosto de 1973, mas o protótipo de internet chilena não foi tão eficaz diante de novas estratégias. Milícias passaram a atacar os poucos caminhões que ainda rodavam – coisa que nenhum computador podia impedir –, e a oposição também passou a usar máquinas de telex, que eram comuns naquela época, para conduzir o golpe nos bastidores. 

No dia 11 de setembro de 1973, enquanto caças despejavam bombas na sede do governo, o presidente pronunciou seu último discurso e cometeu suicídio. Começava a ditadura de Augusto Pinochet, que durou de 1973 até 1990. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a junta militar, e agentes brasileiros participaram de sessões de tortura de presos políticos no Estádio Nacional do Chile. O Cybersyn acabou; a sala de operações foi desmontada e vandalizada. 

Hoje, é impossível imaginar uma empresa pública, o Banco Central ou a bolsa de valores sem o auxílio da internet. Cada variação minúscula nas cotações de minério de ferro ou petróleo viaja o mundo em frações de segundo via cabos submarinos, influenciando ações e decisões. A onipresença dos computadores, porém, não tornou ninguém – seja à direita, seja à esquerda, no mercado ou no governo – automaticamente capaz de fazer escolhas melhores. 

Aí está a genialidade – e a inocência – do plano de Flores e Beer. Eles sabiam que uma rede de computadores era capaz de transformar o mundo. Mas não contavam que informação, em estado bruto, não resolve grande coisa. Hoje, qualquer deputado carrega no bolso o poder de processamento de dezenas de Burroughs 3500. Mas a utopia permanece distante.

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augustopjulio

Sou Augusto de Paula Júlio, idealizador do Tenis Portal e do Curiosidades Online, tenista nas horas vagas, escritor amador e empreendedor digital. Mais informações em: https://www.augustojulio.com.