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Curiosidades

Pacífico Licutan: o africano muçulmano que quase tomou Salvador no século 19

O ano era 1835 e havia um cheiro de incerteza no ar. O Brasil ainda era uma grande sociedade escravista, recebendo centenas de navios vindos da África. Um terço da população brasileira era composta por escravizados. Nos mares, os britânicos tentavam acabar com o tráfico transoceânico — não por bondade, mas sim para enfraquecer economias escravistas e para ter uma desculpa para patrulhar o Atlântico.

O Brasil havia declarado independência em 1822, mas D. Pedro I havia abdicado do trono em 1831, fragilizado pela instabilidade política dentro e fora do país, dando início ao Período Regencial. Cerca de um mês antes, a Noite das Garrafadas (que foi bem literalmente o que o nome sugere: uma revolta com muita violência) havia servido para mostrar aos europeus que os brasileiros não estavam para brincadeira.

Com isso, proliferaram no Brasil revoltas diversas: a Revolta do Ano da Fumaça (Bahia, 1832–1833), a Cabanada (Pernambuco, Alagoas e Paraíba, 1832–1835) e a Revolta dos Carrancas (Minas Gerais, 1833), para citar apenas algumas.

Salvador tinha, em 1835, 65,5 mil habitantes, sendo 42% escravos (27,5 mil) e 29,8% de negros ou pardos livres (19,5 mil). Os brancos representavam 28,8% da população da capital baiana (18,5 mil). Esse barril de pólvora estava prestes a explodir.

Os malês

Malê é variação do termo “imalê”, que significa “seguidor do Islã” ou, ainda, “religião dos malineses” (povo que introduziu o Islã aos iorubás). Era assim que os africanos muçulmanos trazidos ao Brasil eram chamados. Nessa época, a pobreza predominava na Bahia e, mesmo entre os brancos, havia muitos analfabetos. Mas os escravizados muçulmanos, alfabetizados em língua árabe, sabiam ler e escrever.

Esses rebeldes, em sua maioria, eram iorubás (africanos do sudoeste da Nigéria, aqui conhecidos como povo nagô). Tinham o costume de se encontrar aos domingos em centros islâmicos e escolas corânicas da cidade. Entre esses locais de encontro estavam os machacali (termo que pode vir de “majlis”, assembleia, ou então “masjid”, mesquita), pequenos templos islâmicos construídos precariamente no quintal de alguns casarões. Os senhores, muitos deles ingleses protestantes, permitiam a atividade.

Em 1835, uma revolta começou a germinar nesses centros: e se os escravizados se revoltassem e tomassem Salvador dos brancos? Houve dois estopins para essa ideia.

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O primeiro foi quando André Marques, do 5º Quarteirão da Vitória, inspecionou a casa de um inglês chamado Abraham Crabtree. Encontrou a mesquita improvisada e a denunciou ao juiz de paz. No dia seguinte, Crabtree ateou fogo ao pequeno templo. A indignação generalizada contra os senhores brancos, que não apenas privavam os nagôs de sua liberdade, mas também censuravam sua cultura, começou a crescer.

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A prisão de Pacífico Licutan

O segundo estopim foi a prisão de Pacífico Licutan. Esse homem escravizado trabalhava alugado como enrolador de fumo no Cais Dourado e morava no Cruzeiro de São Francisco com seu senhor, um médico. Entre os malês, Pacífico era considerado um sábio, uma espécie de mestre, pois ensinava a religião aos demais, pregava e recrutava novos adeptos ao Islã. Por isso, era considerado “alufá”, variação regionalista da palavra “alfa” usada na África Ocidental, que significa “clérigo, professor, mestre”.

Licutan havia sido preso por causa de seu senhor, que estava cheio de dívidas com os frades carmelitas. Sem dinheiro para confiscar, o governo levou o escravo: Licutan foi preso na Câmara Municipal para ser levado a leilão, de modo que fosse pago o débito.

Um fato curioso é que, mesmo endividado, o senhor de Licutan se recusou a alforriá-lo duas vezes. Em uma delas, os próprios malês haviam juntado dinheiro para libertá-lo. Nessa época, a alforria comprada já existia, embora fosse rara, pois o escravo precisava juntar dinheiro trabalhando “por fora”. Os malês tinham por hábito levantar recursos entre a comunidade dos libertos para alforriar outros escravos. 

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Como eles não trabalhavam na sexta-feira, dia sagrado para a religião, também usavam esse dinheiro para “pagar” o dia de folga aos senhores.

A revolta

A rebelião foi marcada para o dia 25 de janeiro, data que celebrava o fim do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos. O alufá foi informado de que seria libertado. O plano era, após começar a revolta em Salvador, conseguir novos recrutas (entre escravizados e alforriados) e seguir para os engenhos, o epicentro da escravidão baiana.

No dia 24, cerca de 60 revoltosos se reuniram no porão de um sobrado na Ladeira da Praça. No entanto, logo se viram cercados por oficiais — haviam sido descobertos. Segundo os registros históricos, Guilhermina de Roza Souza, negra liberta, traiu a revolta e denunciou seus líderes.

Acuados, os rebeldes se dividiram e se espalharam pela cidade. Estavam armados com espadas, lanças, pistolas e espingardas. Muitos deles se vestiam com roupas típicas islâmicas, uma espécie de túnica branca entendida pelas autoridades como “vestimenta de guerra”, além do takia, o gorro islâmico, semelhante ao turbante usado no candomblé e na umbanda.

Parte do grupo se deslocou para a Praça Municipal para tentar libertar Licutan. “Mas a missão falhou. Os africanos foram apanhados entre dois fogos, o dos soldados, que atiravam de dentro do cárcere, e o da guarda do palácio da província – atual palácio Rio Branco –, que atirava do outro lado da praça. Submetido a pesado tiroteio, o grupo rebelde recuou; uma parte seguiu para o Terreiro de Jesus, mas a maioria se espalhou pela cidade, convocando os africanos à luta”, escreve o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia.

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Os incêndios de casas e prédios públicos, planejados com o objetivo de atrair a atenção dos soldados retirados dos quartéis, não foram postos em prática. Em lugar disso, houve uma ofensiva improvisada, com os 60 revoltosos (mais alguns aderidos vindos da rua), atacando quartéis fortemente armados e, dada a diferença de poderio, sofrendo graves baixas. 

A revolta durou pouco: na manhã do dia 25, já estava encerrada. Uma parte dos revoltosos tentou escapar pelo mar, mas morreu afogada. “Por muitos dias, as ondas de Salvador despejaram corpos na praia”, escreve o antropólogo e pesquisador Pai Rodney. 

Inclusive, de alguma forma, o crânio de um dos mortos foi parar nas mãos de um norte-americano, que o contrabandeou para a Universidade de Harvard, onde ele ficou até 2025.

A revolta envolveu cerca de 1,5 mil participantes (não todos combatentes). 14 soldados das forças oficiais e 73 rebeldes morreram. Mais de 500 foram presos. Depois da revolta, as autoridades endureceram as regras para os escravizados: eles agora só podiam circular pelas ruas de Salvador com ordem escrita dos seus senhores, detalhando para onde iam e o que fariam. Além disso, passaram a reforçar a obrigatoriedade do batismo católico e a reprimir duramente práticas islâmicas.

O fim de Licutan

Capturado, Pacífico Licutan foi condenado a mil chibatadas — mesmo não tendo participado da revolta, porque estava preso, foi considerado um dos líderes do movimento. Outras cabeças da revolta tiveram penas parecidas.

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Durante seu depoimento, Licutan se recusou a revelar o nome de qualquer um de seus discípulos. Limitou-se a dizer que recomendava “muita paciência” a seus colegas quando estes reclamavam de maus tratos. Também afirmou aos interrogadores que seu nome era Bilal, o que era uma forma velada de afronta: esse era o nome do primeiro muezim, um negro discípulo próximo do profeta Maomé. Os outros africanos que aguardavam para depor certamente entenderam o simbolismo.

Embora a Revolta dos Malês tenha fracassado, Pacífico Licutan se tornou um símbolo importante da resistência negra urbana no século 19, que envolvia não apenas quilombos, mas também a articulação intelectual e religiosa nas cidades. Até hoje, é visto como um dos mais importantes líderes da rebelião, a última de uma série de revoltas religiosas ocorridas na Bahia lideradas por negros islamizados. 

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augustopjulio

Sou Augusto de Paula Júlio, idealizador do Tenis Portal, Tech Next Portal e do Curiosidades Online, tenista nas horas vagas, escritor amador e empreendedor digital. Mais informações em: https://www.augustojulio.com.