Os flagships chineses
“As coisas estão mudando. As sanções dos EUA foram em vão”, postou um usuário do Weibo, o equivalente chinês do X/Twitter, em setembro de 2024. “A Huawei ressurgiu”, comentou outro. Eles se referiam ao lançamento do Mate XT Ultimate, o primeiro smartphone dobrável com três telas.
O aparelho chegou ao mercado chinês em 20 de setembro – não por acaso, a mesma data de lançamento do iPhone 16. Pela primeira vez, filas se formaram na porta das lojas da Huawei, com consumidores chegando na noite anterior para ter a chance de adquirir o novo celular da marca.
Algo difícil de imaginar em maio de 2019, quando os EUA acusaram a Huawei de espionagem e proibiram as empresas ocidentais de fazer negócios com a gigante chinesa. Ela ficou sem acesso a CPUs (que comprava da Qualcomm) e aplicativos (foi banida da Play Store e proibida de usar os apps do Google).
Os chineses tiveram que se virar. E conseguiram. Criaram seu próprio chip, o Kirin, e seu exclusivo sistema operacional, HarmonyOS – ambos utilizados no smartphone de três telas.
O Mate XT Ultimate (que mostramos na Super 468) foi uma declaração de independência tecnológica. Uma volta por cima, em grande estilo. Mas não um sucesso de mercado: ele é muito caro (20 mil yuans, equivalente a R$ 16 mil), e vendeu 400 mil unidades. Um nada perto dos 200 milhões de iPhones que a Apple comercializa por ano no mundo.
Mas, nos meses seguintes, várias empresas chinesas começaram a lançar flagships (modelos topo de linha) mais realistas, unindo tecnologias exclusivas e preços mais competitivos. E, com uma ajuda do governo chinês (que dá 15% de cashback para os cidadãos na compra de um celular, estimulando a troca dos aparelhos), a coisa virou.
Em março de 2025, a Apple vendeu 1,89 milhão de iPhones na China – uma redução de 49,6% em relação ao mesmo período de 2024. Agora, as marcas chinesas detêm 92% do mercado local. E não ficam só nele. As três maiores, Xiaomi, Vivo e Oppo, já dominam 30% do mercado global, e começam a se aproximar de Apple e Samsung [veja quadro abaixo].
A principal arma dos flagships chineses mira o ponto fraco dos smartphones modernos: a autonomia. Todos os principais fabricantes chineses já oferecem celulares com baterias de silício-carbono, uma tecnologia que Apple e Samsung ainda não têm.
Elas usam íons de lítio, o mesmo ingrediente das atuais. A diferença está no polo negativo. Nas baterias comuns, ele é feito de grafite; nas novas, o material é o silício-carbono (Si-C). Ele se encaixa melhor com os íons de lítio, e consegue acomodar uma quantidade muito maior deles, o que aumenta a capacidade da bateria [veja no infográfico abaixo].

O primeiro smartphone com essa tecnologia foi o Honor Magic5 Pro, lançado em 2023 (a Honor, hoje independente, nasceu como uma divisão da Huawei).
E o silício-carbono rapidamente se espalhou por lá. “A China é o centro mundial da produção de smartphones, com alta competição entre as empresas locais. Isso torna a evolução tecnológica essencial para a sobrevivência [delas]”, afirma Jusy Hong, gerente sênior de pesquisas da consultoria britânica Omdia.
“Elas [as empresas chinesas] conseguem transformar, com facilidade e rapidez, tecnologias de laboratório em produtos de verdade”, diz Roger Sheng, vice-presidente analista da consultoria americana Gartner. Para ele, isso acontece porque o país domina todas as etapas da fabricação de smartphones, e isso facilita a colaboração entre universidades e empresas locais.

O Realme GT 7 Pro, lançado na China em novembro de 2024, foi o primeiro a trazer uma bateria de Si-C de capacidade muito alta: 6.500 miliamperes-hora (mAh). Isso é 30% a mais do que o Galaxy S25 Ultra e quase 40% acima do iPhone 16 Pro Max (também é 30% a mais do que o Honor Magic5 Pro, o pioneiro do silício-carbono). Colocou a Realme, que foi fundada em 2018 como uma divisão da Oppo mas hoje é independente, no centro das atenções do mercado.
O GT 7 Pro chegou ao Brasil em fevereiro, quando o testei por duas semanas. É sólido e bem-construído, com boas câmeras, ótima tela e especificações típicas de um flagship [veja quadro acima]. Ele dá a mesma sensação que você tem ao usar pela primeira vez um MacBook com Apple Silicon: a duração da bateria impressiona, e transforma a sua relação com o aparelho.
Com a tela sempre acesa e uso ininterrupto, alternando entre o navegador, YouTube, Instagram, TikTok, Spotify e WhatsApp, o Realme aguentou de 16 a 18 horas longe da tomada (ou dois dias inteiros de uso normal). É o dobro, ou o triplo, do que os aparelhos atuais. O GT 7 Pro aponta, pela primeira vez, para um futuro em que a bateria dos celulares deixa de ser uma preocupação – pois sempre tem carga de sobra.

O Redmagic 10 Pro promete ir além: sua bateria, de silício-carbono, tem 7.050 mAh (o dobro de um iPhone 16). O aparelho foi criado pela empresa chinesa ZTE Nubia e é um celular para games, com vários recursos nesse sentido.
A câmera frontal, por exemplo, é invisível. Quando não está em uso, seu furo desaparece, fica oculto sob os pixels da tela. Isso faz uma boa diferença para jogar, pois deixa a imagem mais bonita e imersiva. Outro detalhe é que o Redmagic tem dois botões físicos nos cantos, que você pode usar nos jogos. Interessante, mas na prática acabei não usando tanto: os games de celular já são bem otimizados para toques na tela.
O ponto alto do Redmagic é seu sistema de resfriamento: a CPU é banhada por metal líquido (como no PlayStation 5) e o aparelho tem um cooler interno, um ventilador minúsculo que sopra o ar quente para fora. O cooler é silencioso, não vibra e permite que o Redmagic alcance performance inédita em games – pois ele é capaz de manter a CPU operando a 100% da capacidade sem superaquecer.
O celular rodou Genshin Impact e Asphalt Legends a 60 quadros por segundo (fps), com todos os detalhes gráficos no máximo, alcançou impressionantes 144 fps em Real Racing 3, e enfrentou com valentia o pesado Call of Duty Warzone, no qual obteve 90 fps sem problemas.
A bateria, dependendo do game, suportou de 5h30 a 11 horas de jogo. O aparelho não esquentou muito, com uma exceção: quando destravei o limite de quadros em Warzone, ele foi a 115 fps, mas ficou quente demais, fritando (melhor jogar a 90 fps, já mais do que suficientes).

Nos meses seguintes ao lançamento do Redmagic, a indústria chinesa de smartphones disparou uma sequência de flagships. O primeiro foi o Honor Magic7 Pro, cujo destaque é a função AI Super Zoom. Quando você tira uma foto com 30x a 100x de zoom, um algoritmo de IA entra em ação: ele analisa a cena e tenta recuperar detalhes que as lentes não conseguiram capturar.
O AI Super Zoom exige conexão à internet, e nem sempre funciona direito: análises da imprensa europeia revelaram que os microdetalhes gerados por IA às vezes ficam levemente borrados ou tortos (uma limitação típica das IAs de imagem). Mesmo assim, ele é um avanço interessante. A Honor chegou recentemente ao Brasil, mas ainda não vende esse modelo aqui.

Isso também vale para o Xiaomi 15 Ultra, que ainda não é comercializado oficialmente no País. Ao contrário do Honor, ele aposta numa tecnologia consagrada: um sensor de imagem bem grande, com 1 polegada.
É o mesmo tamanho dos sensores presentes em câmeras profissionais, e 50% maior do que os usados em smartphones. Isso promete fotos com menos ruído (granulação), mesmo em situações noturnas, e retratos mais bonitos (sensores grandes têm menor “profundidade de campo focal”, ou seja, separam melhor a pessoa fotografada do fundo da cena).

Já o x200 Ultra, da marca Vivo, pode até ser acoplado a uma lente externa – da marca alemã Zeiss, que também criou as lentes internas do aparelho.
A Vivo começou a operar no Brasil este mês (aqui ela usa o nome Jovi, para evitar confusão com a operadora), mas ainda não vende o x200 Ultra no mercado nacional. Preferiu começar com dois modelos intermediários, V50 e V50 Lite, fabricados em Manaus – onde a Realme também inaugurou recentemente sua linha de produção.
A produção local irá deixar os smartphones chineses mais baratos, e deve ajudá-los a tomar espaço das marcas tradicionais. “Pode haver uma mudança na estrutura do mercado no Brasil”, acredita Miguel Pérez, analista sênior para a América Latina da consultoria asiática Canalys.
A primeira marca chinesa a fabricar smartphones no Brasil foi a Oppo, que em 2024 iniciou a produção local de modelos básicos e intermediários. Este ano, na China, ela lançou dois flagships que chamaram a atenção do mercado internacional.

O primeiro é o Find N5, o smartphone dobrável mais fino do mundo: quando aberto, tem apenas 4,2 mm de espessura, o equivalente a duas moedas. O outro é o X8 Ultra, que tem quatro câmeras traseiras, incluindo duas do tipo periscópio, com lentes na horizontal [veja quadro].

Essas lentes, desenvolvidas em parceria com a empresa sueca Hasselblad, permitem o uso de mais elementos ópticos (melhorando a qualidade de imagem) sem aumentar a espessura do smartphone.
A chinesa TCL é mais conhecida por suas televisões (é a segunda maior fabricante de TVs do mundo), mas também faz smartphones: em maio, lançou o modelo 60 XE Nxtpaper. Ele é baratinho e tem especificações modestas, não é um flagship no sentido tradicional. Mas merece entrar na lista devido a uma tecnologia exclusiva: a tela Nxtpaper, que imita o papel eletrônico de leitores como o Kindle.

Passei duas semanas testando o smartphone TCL 40 XE, que utiliza uma versão anterior dessa tecnologia, e fiquei surpreso com a tela. Ela parece um LCD colorido normal, com acabamento fosco. Mas, quando você ativa o modo Nxtpaper, realmente fica parecendo a tela do Kindle.
Seu segredo está no processo de nano-etching (a tela é microesculpida durante a fabricação, para ficar com textura similar a papel) e na técnica DC dimming, que ajusta a alimentação elétrica da tela para eliminar a cintilação (flicker) inerente a todo LCD – e deixar a imagem quase tão estável quanto no papel eletrônico. Além do celular 60 XE, a empresa chinesa também usa sua tecnologia num tablet, o TCL Nxtpaper 11.

O item mais recente da onda de lançamentos chineses é o Realme GT 7, apresentado no fim de maio (a convite da empresa, estive no evento de lançamento, em Paris, que reuniu 300 jornalistas de diversos países).
Ele é uma versão modificada do GT 7 Pro, com bateria ainda maior, de 7.000 mAh, processador chinês (o Mediatek Dimensity 9400e) e a parte traseira feita de um novo material, uma liga de fibra de vidro com grafeno que ajuda a dissipar o calor gerado pela CPU.
Também tem alguns recursos próprios de inteligência artificial, como o AI Glare Remover e o AI Planner. O primeiro elimina os reflexos de fotos tiradas através de uma janela (de dentro do ônibus, por exemplo). Funciona bem.
O segundo serve para adicionar compromissos à sua agenda. Basta dar dois tapinhas na parte de trás do celular e o AI Planner lê o que está na tela; se encontrar compromissos/horários, ele adiciona ao Google Calendar.
É bastante útil, com um porém: nos meus testes, o AI Planner sempre foi um pouco lento, demorando de 10 a 15 segundos para processar as informações.
Já a bateria do Realme GT 7 durou 17 horas de uso ininterrupto, com a tela acesa. Ou seja, ele tem autonomia similar à do GT 7 Pro, mesmo sendo equipado com bateria maior. É que o chip Mediatek gasta mais energia do que o Qualcomm usado no outro modelo.
A Realme também mostrou um celular conceitual com 10.000 mAh, que pretende lançar nos próximos anos.
Para que ele se torne realidade, será preciso vencer uma série de obstáculos, tanto tecnológicos quanto geopolíticos: no fim de maio, os Estados Unidos decidiram proibir que empresas ocidentais vendam para a China ferramentas de Electronic Design Automation (EDA), um tipo de software usado para projetar chips e placas.
Isso pode atrapalhar as empresas chinesas. Ou então, talvez elas simplesmente façam o que têm feito até hoje: desenvolvam suas próprias tecnologias, driblando as sanções americanas, e sigam em frente.
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