Nona Arte #1: entenda a narrativa única das HQs com esses 3 roteiristas
Você com certeza já se deparou com pessoas que até são interessadas por coisas ligadas a quadrinhos ou que tem vontade de ler mas acaba desistindo depois de ler algumas coisas menos simples do que Turma da Mônica. A razão disso não é a pessoa ser preguiçosa ou “burra”. Na verdade é bem compreensível, pois, no colégio, até aprendemos a ler com gibis. Mas as aulas não ensinam e compreender a linguagem da Nona Arte.
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Sem problemas, vem comigo para sacar que é ainda mais divertido e muito interessante identificar as técnicas e os recursos usados por vários autores em histórias mais complexas — e não exatamente complicadas.
A ideia dessa série especial de matérias é mostrar vários tipos e estilos de roteiros, desenhos e arte-final que exploram recursos que são exclusivos dos quadrinhos. Do mesmo jeito que a Literatura, o Cinema, o Teatro, a Música e outros gêneros possuem elementos específicos de suas linguagens, a Nona Arte também tem — afinal, foi por isso que os gibis se tornaram arte.
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Assim, Turma da Mônica também é legal e tem lá seus toques artísticos, entretanto, embora não seja tão fácil produzir algo simples, divertido e cativante, é uma leitura básica que tem um papel fundamental para nos levar a narrativas mais elaboradas.
Do mesmo jeito que você não assiste o mesmo filme que passou a infância inteira vendo, muitos leitores de quadrinhos simplesmente buscaram outras coisas que fazem mais sentido com o passar dos anos e de nossas experiências.
Então, é isso, vamos lá, venha comigo compreender o poder da narrativa dos quadrinhos. E para homenagear a combinação de linguagens, você vai poder ler a matéria vendo alguns quadrinhos que fiz para interagir com o texto e ouvir músicas que fizeram parte da minha história com os quadrinhos. Aperte o play nesta lista do Spotify e vamos nessa!
Está tudo conectado!
Quando era mais jovem, a primeira vez que escutei a banda Weezer, em 1994, fogos de artifício explodiram na minha mente. Em uma época sem internet, ouvi canções que lembram o rock dos anos 1960 que se tornou conhecido como power pop, a exemplo de The Byrds, Big Star e The Beatles.
Ao mesmo tempo, não era algo para uma geração antiga, pois conectava os seriados (ou similares) dessa época que meus irmãos mais viram e eu também cheguei a assistir quando criança, como Mary Tyler Moore, The Monkees, Perdidos no Espaço, Twilight Zone, entre outros.
E foi aí que descobri também que outras pessoas que curtiam Weezer, gostavam das mesmas coisas que eu, a exemplo da ficção científica de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke e de faroestes espaciais como Star Wars.
Elas também curtiam os autores do século XIX da turma do Julio Verne e de Arthur Conan Doyle, assim com Senhor dos Anéis, role playing games, adventures textuais de MSX, videogames, dramédias colegiais do John Hughes, X-Men, entre outras coisas. Foi uma época em que a palavra “nerd” jamais conseguiu encaixotar tanta coisas que as pessoas consumiram de uma forma ou de outra, sem nem ligar para essa nomenclatura que atualmente está mais ligada a pseudointelectuais cretinos.

Foi aí que percebi que os quadrinhos conseguiam interagir com músicas, filmes, livros e muitas outras coisas. E aí me perguntei: “o que existe só teatro para algo se chamar assim?” Eis que isso me levou a estudar bastante semiótica, entre outras coisas, que ajudaram a compreender que a Nona Arte tem um poder único de combinar várias linguagens das outras “oito artes” para gerar narrativas que nenhum outro gênero pode.
Os quadrinhos conseguem transitar facilmente por temas, combinando linguagens, para trazer maneiras inovadoras e exclusivas de contar histórias e inspirar. É por isso que os filmes da Marvel Studios, fieis aos títulos originais, aboliram os gêneros engessados do cinema de décadas atrás, que seguiam seções mais específicas.
Anteriormente, Hulk virava “drama”, X-Men se encaixava em “ficção científica”, e por aí vai — o fracasso da Fox Films com os títulos derivados do Homem-Aranha ainda usam esse encaixe, por isso não dá certo. A Marvel Studios, assim como a Marvel Comics, traz uma combinação de fantasia, ficção científica, aventura, drama e comédia. Tudo ao mesmo tempo.
Está tudo conectado. E, agora, vou exemplificar com três autores.
A bruxaria de Alan Moore
O criador de Watchmen, V de Vingança, Promethea, A Liga Extraordinária, Do Inferno, entre outros clássicos, sempre gostou de desconstruir e perverter os padrões de histórias convencionais. E a estrutura dos quadrinhos é um terreno perfeito para isso.
Em Watchmen, na edição número seis, que estabelece a exata metade da trama de 12 números, o metódico filho de um relojoeiro que se tornou uma criatura divina, o Doutor Manhattan, tem uma epifania e decide se isolar dos humanos ao criar um estrutura simétrica e minuciosamente calculada para funcionar como cada pecinha de um relógio.
Nessa parte da trama de 24 páginas, a de números 12 e 13 se transformam em um espelho, e, a partir dali, todos os painéis, balões, sílabas e palavras são contadas precisamente como o exato oposto da parte anterior ao encontro de seu reflexo. Isso jamais poderá ser feito em outra linguagem que não nos quadrinhos.
Em A Liga Extraordinária, Moore lançou uma história que veio com um jogo de tabuleiro, que se popularizou na mesma época que era ambientada a trama; e um disco com canções originais também conectadas ao mesmo período. Ou seja, para ler por completo o enredo, você tinha que acompanhar a revista e complementar com os trechos espalhados pela aventura do jogo de tabuleiro e com as músicas do EP.
Em Promethea, Moore foi além e construiu uma narrativa em formato de pôster e outra contada por meio de um baralho de tarô, ambos ilustrados, com estilo e sequências gráficas típicas da Nona Arte. Isso só pode ser feito com quadrinhos.
Claro, a combinação de gêneros e linguagens não é algo exclusivo e nem nasceu com os quadrinhos. porém, o fato de nossa monte criar sons, cheiros, texturas, movimentos e atmosferas é o que faz toda a diferença para que sejamos orientados por uma narrativa que oferece experiências individuais em meio à jornada coletiva com a mesma trama, assim como os mesmos personagens e conclusões.

Com relação aos roteiros, Moore chega a ser xarope de tão exigente que é com os desenhistas, que pouco têm liberdade para brisar em algum design específico ou cenas de ação e de transição mais dinâmicas e amigáveis para jovens leitores.
Mesmo em títulos mais ligados ao heroísmo tradicional, ele precisa bastante da colaboração de ilustradores com pegada mais clássica, pois sua noção de sequências de ação é muito ligada aos quadrinhos mais inocentes da Era de Ouro e mais brisados da sci-fi e fantasia da Era de Prata.
A conversa pingue-pongue de Brian Michael Bendis
Bendis foi um dos maiores responsáveis pela retomada das franquias clássicas da Marvel Comics na virada dos anos 2000, e também contribuiu para a atualização dos heróis de rua e de ícones para uma nova geração no Universo Ultimate. Ele ainda contribuiu com o fortalecimento de personagens femininas, criando Alias, ou Jessica Jones; e antecipou a diversidade na linha da Casa das Ideias com mais etnias, gêneros e raças.
Depois do fracasso nos anos 1990, a Marvel precisava de alguém que olhasse para fora da janela e trouxesse a pessoa comum, o cotidiano, de volta para a vida dos heróis, de maneira que se conectasse com os leitores que envelheceram e aqueles que ainda não conseguiam compreender as motivações de personagens que estavam ali já há mais 50 anos. Então, viram nos diálogos que lembravam textos feitos para séries de TV um fluxo diferente, adaptado ao formato dos quadrinhos.
Bendis tem muita habilidade em reunir o zeitgeist da época em referências divertidas no meio de diálogos rápidos e abundantes, de maneira que os personagens possam se caracterizar para o leitor por meio de seu jeito de se comunicar. Ele é especialista em uma narrativa que explora bem o timing das gags e em trazer de volta o lado mundano e divertido dos heróis — e destacar o lado falível e humano sempre o charme da Marvel, e que andava perdido nos anos 1990.

Os Vingadores tinham uma dinâmica que, a todo momento, lembrava aos leitores as personalidades e características de cada herói sem que ele tivesse que ficar resumindo toda a trajetória de cada um. E isso é muito amigável para novos leitores. Por exemplo, a dinâmica que vemos hoje em dia entre Thor, Homem de Ferro e Capitão América foi estabelecida com Bendis.
Você não precisava conhecer os personagens para notar como o fato de eles serem completamente diferentes uns dos outros incomoda bastante a convivência, que só se torna heróica quando eles conseguem juntar o melhor de si para o bem maior. Bendis faz isso no texto por meio da diferença das pausas dramáticas, do tipo de fonte da letra e dos formatos e cores dos balões de diálogo e das próprias escolhas de palavras, assim como o timing de ações em meio às falas de cada um — geral até deu um nome para isso, o chamado “Bendis-Speak” — ou “ParaBendis” no Brasil.
Sua famosa fase conhecida como “Detran Avengers” é um clássico que mostra bem as diferenças de cada personagem ao obrigá-los a conviver 24 horas por dia juntos em uma época que parte dos Vingadores tinha que ficar escondida na casa do Doutor Estranho.
Em outro momento clássico de Bendis, podemos ver como cada personagem age em uma dinâmica hilária de tentativa de intervenção nas atitudes agressivas do Demolidor. O humor característico que vemos nos filmes da Marvel hoje em dia são diretamente adaptados dos textos dele, justamente porque seus roteiros já vem com uma narrativa que une bem as ações e expressões faciais, gestuais e corporais dos personagens com o timing de suas falas.
Muitos até criticam que Bendis não tem assim aquele primor na construção de sagas mais complexas, principalmente na consistência do desenvolvimento; ou que ele não oferece as melhores sequências de lutas ou atos fantásticos que só os superpoderosos seres da Marvel podem fazer.
Contudo, sua habilidade em moldar a narrativa para algo que se torne praticamente em um sitcom de streaming, garante momentos de pura diversão.
O criador de mundos chamado Jonathan Hickman
Hickman tem um estilo que valoriza a dinâmica de grupo por meio de interações dramáticas e sua maior habilidade é a de construir atmosferas e “mundos narrativos” próprios para cada um de seus projetos.
Tudo que ele faz é pensando em um conjunto de elementos que se completam para alinhar os temas com as identidades visuais, o tipo de narrativa, a evolução da história e o que cada personagem desempenha em escala micro e macro.
Fica mais fácil descrever como ele faz isso ao vermos dois de seus grandes projetos dos últimos 20 anos. Na saga Infinito, Hickman propôs uma ópera espacial em escala épica narrada na Terra e no espaço, e em diferentes micronúcleos.
Ele preparou o terreno por meses, e, quando a minissérie principal começou, a trama, que também envolve a aparente busca de Thanos pelas Joias do Infinito, foi dividida em seis capítulos. Cada um teve seu tema principal conectado ao nome da gema, que deu a cor para as capas do título e todas as outras edições derivadas no evento.

O tempo de narrativa de cada capítulo do enredo principal foi mostrado de forma parecida com um blockbuster, com sequências de ação e interação dramática bastante dinâmicas e intensas. Depois de preparar anteriormente todo o ápice de sua ópera espacial, cada capítulo teve um desenvolvimento cronológico que emulou um filme em tempo real.
O outro exemplo é seu trabalho na Era Krakoana dos X-Men. Além de ter o mesmo cuidado editorial na criação da identidade visual e do formato de publicação alinhado aos temas e tipos de narrativa, Hickman desenvolveu uma interessante maneira de desenvolver subtramas de maneira mais sustentável em termos comerciais.
Por exemplo, ele estabeleceu os principais enredos dos primeiros anos em dois títulos mensais que funcionaram como pilares. Durante o desenvolvimento de cada um, alguns derivados foram pipocando em minisséries, que costuraram as histórias principais por alguns meses e depois sumiram, de acordo com a necessidade dessas tramas satelitais.
Isso permitiu a Hickman estabelecer diversas camadas para o complexo novo mundo utópico criado para os X-Men. Ele pôde destrinchar sua visão do que seria a sociedade e a cultura mutante com um idioma e protocolos próprios, que eram parte de uma densa ficção científica. Então, cabia aos leitores decidir até que ponto estavam se divertindo e interessados em cada nível de complexidade.
Um mundo de possibilidades
Como pode notar, os quadrinhos possuem uma estrutura narrativa pronta para ser rasgada e reconstruída; moldada e remodelada, desconstruída e remonta; de acordo com a habilidade do autor.
Seja para nos confortar com adoráveis clichês narrando o ordinário de forma extraordinária ou ilustrando a vida como ela é de forma mais cruel ou didática, os quadrinhos nasceram para ser seu hit rock’n’roll favorito: rebelde e iconoclasta por natureza, sempre disposto a confrontar as memórias afetivas para fazer sentido à cada geração de leitores.
DAQUI 15 DIAS, EM NONA ARTE #2: entenda a narrativa única das HQs com esses 3 desenhistas.
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