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Curiosidades

A real sobre a desextinção

Texto Rafael Battaglia  Ilustração Ana Kozuki  Design Luana Pillmann  Edição Bruno Vaiano

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o primeiro episódio de Game of Thrones, a família Stark encontra seis órfãos de lobo-terrível na floresta. Ned Stark, o rei de Winterfell, decide adotá-los, e cada um dos seus seis filhos fica com um lobinho. O menor deles vai para Jon Snow, o bastardo de Ned (e depois dizem que pais não fazem diferença entre os filhos, rs).

 

A relação entre os Stark e os lobos-terríveis é ancestral – eles estampam o brasão da família –, mas andava em baixa: havia dois séculos que os animais não eram vistos ao sul da Muralha, uma barreira milenar construída para proteger Winterfell e o resto do continente de Westeros. Antes dos seis filhotes, acreditava–se que a espécie estava extinta na região.

O lobo-terrível (Aenocyon dirus) existiu de verdade: viveu nas Américas até o final da última glaciação, que acabou entre 10 mil e 12 mil anos atrás. Foi esse animal, aliás, que inspirou o autor George R.R. Martin a criar Game of Thrones. Nos anos 1990, após visitar uma exposição com centenas de fósseis da espécie, ele abandonou um livro de ficção científica que estava escrevendo e começou a esboçar a saga.

Martin não foi o primeiro a se apaixonar pelos lobos-terríveis. Alguns anos antes, em 1988, Lois Schwarz criou nos EUA o Projeto Dire Wolf (o nome popular, em inglês, do A.dirus). O objetivo era cruzar raças de cães para criar um animal que reunisse características associadas ao lobo ancestral, como pelo branco, porte maior e pernas musculosas.

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O projeto existe até hoje. Mas é claro: nunca houve a pretensão de ressuscitar uma espécie – são apenas pessoas empenhadas em desenvolver um cachorro no estilo do dire wolf (tentativa que ainda não foi reconhecida pelas grandes associações de registro de raças, diga-se).

A história do lobo-terrível não termina aí. Pelo contrário: recentemente, o bicho virou foco de uma empreitada mais ambiciosa que a dos cachorros de Schwarz, que balançou o mundo da ciência.

No início de abril, a Colossal Biosciences, empresa americana de biotecnologia, anunciou o canídeo pleistocênico como o “primeiro animal desextinto com sucesso no mundo”. O release à imprensa exibia três supostos filhotes de lobo-terrível: os machos Rômulo e Remo, que nasceram em outubro, e a caçula Khaleesi (uma referência a Game of Thrones), que nasceu em janeiro.

Na verdade, o trio foi criado usando como base o genoma de um lobo-cinzento atual (Canis lupus). Apenas 20 genes foram modificados de acordo com amostras de DNA coletadas de fósseis do A. dirus.  Os embriões resultantes cresceram no útero de cadelas e, neste momento, estão sendo monitorados de perto em uma reserva de 8 km², longe de animais selvagens.

Os lobinhos viralizaram na internet e apareceram com destaque em jornais do mundo todo. Mérito, em grande parte, do marketing da Colossal: numa das fotos de divulgação, um dos animais está no colo de George R.R. Martin, que também é consultor e investidor da empresa.

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Fundada em 2021, a Colossal se define como uma “empresa de desextinção”. Além do lobo, quer trazer de volta mamutes, dodôs e tigres-da-tasmânia. Também trabalha em parceria com ONGs e institutos de pesquisa para salvar animais à beira da extinção, como o rinoceronte-branco-do-norte.

O plano deles é reintroduzir espécies desextintas em seus antigos habitats: mamutes na Sibéria e dodôs nas Ilhas Maurício, por exemplo. Segundo a Colossal, isso ajudaria a reequilibrar esses ecossistemas (falaremos mais adiante sobre essa afirmação ousada). Outro objetivo é, no caminho para trazer os bichos de volta, desenvolver tecnologias de reprodução e engenharia genética que possam ser usadas em outras áreas, como a agropecuária e a medicina.

A Colossal não inventou o termo “desextinção” nem é a pioneira no ramo. Mas sem dúvida foi a empresa que mais contribuiu para popularizar esse conceito, produzindo conteúdos com linguagem acessível e cheios de memes. O vídeo dos lobinhos, por exemplo, bateu mais de 1 milhão de visualizações no YouTube.

George Church já estudava maneiras de ressuscitar o mamute-lanoso quase dez anos antes de cofundar a Colossal. Um embrião geneticamente modificado pode sair em 2028.Ana Kozuki/Superinteressante

Com a fama, vieram também as críticas. Logo após a notícia dos lobos, cientistas e publicações especializadas questionaram se Rômulo, Remo e Khaleesi podem mesmo ser chamados de lobos–terríveis. Em maio, Beth Shapiro, cientista-chefe da Colossal, admitiu à revista New Scientist que os animais são “lobos-cinzentos com 20 edições genéticas”.

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Será que é o suficiente para cravar que houve uma desextinção? E será que esse é mesmo um bom caminho para a conservação da biodiversidade? É o que vamos entender agora.

A volta dos que foram

O quagga era um equino que vivia na África do Sul. Tinha listras brancas e pretas na cabeça e no pescoço. O resto do corpo era marrom – parecia a mistura de uma zebra com um cavalo. Devido à caça, foi extinto. O último exemplar morreu em 1883 num zoológico de Amsterdã, na Holanda.

Em 1984, uma análise de DNA confirmou uma antiga suspeita: a de que o quagga era uma subespécie da zebra comum, que habita o leste e o sul da África. A partir daí, ganhou força a ideia de que seria possível “revivê-lo” com sucessivos cruzamentos de zebrinhas. Em 1987, um grupo de sul-africanos deu início ao Projeto Quagga, que segue até hoje na tentativa de criar um animal com a mesma aparência do antigo equino.

Até aí, nenhuma novidade. Há milhares de anos, aprendemos que dá para tapear a evolução ao priorizar a reprodução de certos indivíduos, como o cavalo que aguenta viagens mais longas ou o lobo dócil que daria um bom companheiro (e que acabou originando os totós modernos). A humanidade já praticava seleção artificial por intuição muito antes de saber genética.

A conversa sobre desextinção ganhou tração na virada do milênio, com o avanço de técnicas para extrair material genético de fósseis e sequenciar essas moléculas de DNA – revelando, assim, as receitas bioquímicas para produzir as proteínas dos organismos pré-históricos.

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Foi nessa época, também, que conseguimos clonar um mamífero pela primeira vez: a ovelha Dolly, em 1996. A clonagem prometia uma revolução, sobretudo para o setor de animais de criação: em vez de perder tempo com cruzamentos em busca de uma vaca que produz mais leite (e torcer para que suas filhas carregassem consigo essa característica), bastaria pegar o DNA do bovino mais adequado e inseri-lo no óvulo de um doador. Um simples recorta e cola, que nem você faz para reaproveitar fórmulas em planilhas do Excel.

Não demorou para que cientistas considerassem aplicar a nova técnica com amostras recuperadas de genomas ancestrais. Logo de cara, porém, ficou evidente que um futuro à la Jurassic Park seria inviável: o DNA se degrada com o tempo, e fósseis de milhões de anos não raro acabam contaminados com o material genético de outros organismos. O jeito seria usar animais extintos mais recentes do que os dinossauros.

Em 2003, cientistas europeus tentaram clonar o bucardo, uma subespécie de cabra que havia sido extinta apenas três anos antes. A parte do DNA foi moleza: havia uma boa quantidade de células do último espécime mantidas vivas em laboratório. Mas, sem uma fêmea de bucardo para gestar o clone, foi preciso encontrar uma barriga de aluguel compatível.

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Os pesquisadores, então, inseriram o núcleo das células de bucardo em óvulos de 57 cabras (cujos núcleos originais foram previamente removidos). Da mistura, surgiram embriões que foram inseridos no útero das cabritas. Sete delas engravidaram, mas apenas um filhote nasceu, e não durou muito: por causa de uma má-formação no pulmão, ele morreu dez minutos depois.

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O bucardo ficou famoso por ter sido o primeiro animal a ser extinto duas vezes. Mas o resultado não desanimou os entusiastas da desextinção. Nos anos seguintes, surgiram organizações focadas em usar biotecnologia para conservar algumas espécies ameaçadas e tentar reviver outras. Uma delas foi a americana Revive & Restore, fundada em 2012 com planos de ressuscitar o pombo-passageiro, a galinha-da-pradaria e o mamute-lanoso.

Ilustração, colorida, de uma carruagem, sendo puxada por dois quaggas, levando um casal. Ao fundo, vê-se um Arco do triunfo e um jardim.
O quagga foi extinto na África do Sul no século 19 devido à caça excessiva. Desde os anos 1980, há tentativas de cruzar zebras para trazê-lo de volta.Ana Kozuki/Superinteressante

Extinto há “só” 4 mil anos e um poço de carisma peludo, o mamute parecia um ótimo candidato à desextinção. Naquele mesmo ano, cientistas russos descobriram no gelo da Sibéria o exemplar mais bem conservado até então: uma filhote batizada de Yuka que viveu há 39 mil anos. Por ter virado um picolé, Yuka manteve boa parte dos seus tecidos moles preservados (como tromba, língua e boca), o que tornava a extração de DNA mais fácil.

As pesquisas da Revive sobre mamutes eram comandadas por George Church, professor de genética de Harvard. Church é um nome importante no ramo da biologia molecular, com décadas de experiência – mas nem ele foi capaz de reviver um animal, por mais conservados que seus fósseis estivessem.

Tudo mudou com uma descoberta revolucionária. Também em 2012, as pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna desenvolveram o CRISPR/Cas9, a mais sofisticada (e barata) técnica de edição genética já criada.

Funciona assim: no laboratório, cientistas criam uma molécula de RNA que servirá como uma fita-guia para encontrar o pedaço do código genético a ser editado. Esse RNA, então, é anexado à enzima Cas9, que é capaz de cortar DNA como se fosse uma tesoura após a identificação do trecho certo. A partir daí, é possível detectar, deletar e substituir genes inteiros.

O método CRISPR (essa é a sigla em inglês que dá nome à fita-guia de RNA) foi inspirado no sistema imunológico de algumas bactérias, que usam o combo RNA e Cas9 para identificar o código genético de vírus e neutralizar os invasores. Não à toa, as “tesouras” usadas hoje em laboratório entram nas células de carona em um vetor viral. Pelo trabalho, Charpentier e Doudna levaram um Nobel.

CRISPR, RNA, Cas9… É uma sopa de letrinhas complicada, sabemos. Mas o que importa para essa história é que o novo método alimentou a esperança de reviver espécies usando, como ponto de partida, animais semelhantes ainda vivos. Assim como você monta o seu personagem no The Sims, o CRISPR possibilitaria, ao menos na teoria, editar um elefante para que ele ficasse tão peludo quanto um mamute.

Em 2015, uma pesquisa (1) sequenciou o DNA do mamute-lanoso. Naquele ano, Church deu início a testes em células do elefante-asiático para tentar torná-las mais resistentes ao frio. Em 2017, Peter Thiel, bilionário por trás de empresas como o PayPal e o Facebook, investiu US$ 100 mil na empreitada. Àquela altura, o laboratório de Church já havia conseguido modificar 45 genes. Mas ele precisava de mais dinheiro.

É que esse é um processo caro e demorado, mesmo. Entender o que cada gene faz é um trabalho de tentativa e erro, que consiste em criar culturas de células e ir ligando e desligando cada trechinho do DNA delas. É como se você precisasse decifrar o quadro de luz de um prédio sem nenhuma informação prévia sobre os disjuntores. “Esse é o grande gargalo de qualquer laboratório do mundo”, diz Marcelo Mendes Brandão, pesquisador do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética da Unicamp.

Em 2020, outro empreendedor do Vale do Silício se interessou pelas pesquisas de Church. Dono de uma fortuna de quase US$ 4 bilhões, Ben Lamm procurou o cientista para conversar sobre possíveis parcerias. Ele havia se interessado por um projeto com algas marinhas geneticamente modificadas, que capturavam mais carbono que o normal. Mas a conversa logo evoluiu para os mamutes-lanosos.

Church defende que os mamutes podem impedir o colapso do permafrost siberiano, uma camada de solo congelado que está derretendo por causa do aquecimento global. O processo vai liberar milhões de toneladas de carbono que estavam aprisionadas no gelo.

O papel dos mamutes seria ajudar a quebrar árvores e arbustos na Sibéria e recuperar as gramíneas até que tudo virasse uma grande pastagem, como era na época em que eles viviam por lá. A grama baixa, segundo Church, reflete mais luz do Sol, o que manteria o permafrost numa temperatura segura.

Esse plano nem de longe é consenso entre cientistas, e é dificílimo de colocar em prática (quantos mamutes seriam necessários para recriar todo um ecossistema?). Mesmo assim, Lamm comprou a ideia e, em 2021, a dupla fundou a Colossal Biosciences. Church transferiu suas pesquisas da Revive para o laboratório da nova empresa, montado na cidade de Dallas (EUA) a partir de um capital inicial de US$ 16 milhões captado por Lamm.

Em quatro anos, a Colossal atingiu US$ 10,2 bilhões em valor de mercado.

O empresário não convenceu outros milionários apenas com o discurso conservacionista. As pesquisas da Colossal têm potencial para criar tecnologias que podem ser vendidas para outras companhias. No caso dos mamutes, por exemplo, a startup planeja colocar embriões em úteros artificiais – um mercado que, para os humanos, pode valer US$ 20 bilhões no futuro. Em entrevista à revista New Yorker, Lamm disse que alguns dos primeiros investidores foram atraídos pela “dupla finalidade da Colossal – um benefício ecológico positivo, mas que gera dinheiro pra ca**lho”.

Furou a fila

No começo, a Colossal decidiu trabalhar a partir da “megafauna carismática”: animais extintos que, por algum motivo, permaneceram no imaginário popular. Nada de bactérias ou insetos – o objetivo era ressuscitar o elenco da Era do Gelo.

Eles listaram três bichos: o mamute-lanoso, o dodô (que foi extinto no século 17) e o tigre-da-tasmânia (que desapareceu nos anos 1930). O apelo parece ter funcionado: a Colossal atraiu os mais diversos investidores, do cineasta Peter Jackson à socialite Paris Hilton. A empresa emprega mais de 130 cientistas e, na sua última rodada de investimentos, captou US$ 200 milhões.

Em 2023, a Colossal percebeu que incluir o lobo-terrível no seu portfólio poderia ser um bom negócio, e não só pela fama do animal: havia indícios de que ele traria resultados mais rápido do que os outros bichos. Estudá-lo virou prioridade.

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O primeiro passo foi descobrir qual era a sequência exata de letrinhas de DNA do lobo-terrível. Para isso, Beth Shapiro e sua equipe juntaram materiais de duas amostras: um dente de 13 mil anos e um crânio de 72 mil anos. Shapiro já conhecia esses fósseis desde 2021, quando coassinou um artigo (2) que investigou a linhagem evolutiva da espécie.

Ilustração, colorida, de um cachorro, na coleira, latindo para dois tigres-da-tasmânia que estão remexendo uma lata de lixo.
Nativo da Oceania, o tigre-da-tasmânia (ou tilacino) era um marsupial que recebeu esse nome devido às listras nas costas. O último exemplar morreu num zoológico em 1936.Ana Kozuki/Superinteressante

Os lobos-terríveis não são parentes tão próximos do lobo-cinzento atual. Na verdade, apesar das semelhanças cosméticas, o último ancestral comum dos dois viveu há 6 milhões de anos, mais ou menos a mesma distância que nos separa dos chimpanzés. A análise de DNA da Colossal sugere que eles compartilham 99,5% do genoma (o estudo (3) da empresa, importante ressaltar, ainda não passou pela revisão de outros cientistas).

Feita a comparação, era hora de entender em quais genes eles deveriam mexer para que um lobo-cinzento ficasse mais parecido com um terrível. Meio por cento parece pouco, mas estamos falando de milhares de genes. É um oceano de possibilidades – até porque, um mesmo gene pode guardar a receita de duas ou mais proteínas ao mesmo tempo, e a maioria dessas proteínas não interfere só em um único processo. A mesma molécula que deixa um elefante peludo pode acabar afetando sua digestão, por exemplo.

Usando CRISPR, a Colossal fez 20 edições em 14 genes de lobo-cinzento. Dessas, 15 foram feitas com base no DNA do lobo-terrível, para que os novos animais se parecessem com ele em tamanho, musculatura e formato das orelhas.

As outras cinco alterações também têm a ver com a aparência (os pelos brancos), mas foram baseadas no DNA de outros canídeos. É que, nesse caso, as variantes do lobo-terrível poderiam trazer efeitos indesejados ao cinzento, como cegueira e surdez.

Feitas as edições, entrou em cena a técnica de clonagem da ovelhinha Dolly. Os embriões modificados foram gestados em duas cachorras fêmeas de grande porte, por duas razões: há um grande conhecimento sobre o DNA e a reprodução de cães, e seria mais fácil conseguir autorização para usá-los na pesquisa em comparação com lobos (bichos selvagens que, dependendo da espécie, estão ameaçados de extinção).

Foram 45 embriões de lobinhos. Dois vingaram: Rômulo e Remo (Khaleesi veio depois). A gestação durou 60 dias. Do início da pesquisa até o nascimento, todo o projeto durou 18 meses. Mas, e aí: são lobos-terríveis?

Não, não são.

Copia, só não faz igual

Aí vai um banho de água fria para quem chegou até esta página com alguma esperança: segundo a IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais), é improvável que, um dia, seja possível desextinguir uma espécie ancestral.

Ainda que se tenha um DNA antigo sequenciado, e que seja possível replicá-lo em laboratório, há outras coisas que fazem um animal ser o que ele é, como todas as nuances do seu comportamento e a função que desempenha dentro de um ecossistema. Essas são informações difíceis de obter, mesmo com a tecnologia disponível hoje.

O que dá para fazer são os chamados proxies (“aproximações”) – substitutos da espécie extinta, seja porque são muito parecidos geneticamente ou porque exercem o mesmo papel na natureza. É tipo fazer carbonara com bacon e parmesão em vez de guanciale e queijo pecorino. Não é a receita original, mas ainda é um bom macarrão.

Isso é diferente de dizer que uma espécie ressuscitou. A Colossal sabe – em seu site, ela escreve que seu mamute é “um elefante que resiste ao frio com traços biológicos essenciais do mamute-lanoso”. Tipo uma “bebida láctea” em vez de “leite”. Mesmo ciente disso, a empresa insiste em usar o termo “desextinção” por seu impacto midiático.

Isso quer dizer que Rômulo, Remo e Khaleesi são proxies do lobo-terrível? Não há consenso. Para alguns especialistas, o número de edições genéticas e o visual da ninhada são mudanças insuficientes – e que podem até estar equivocadas: acredita-se que o pelo dos terríveis era ruivo, e não branco.

“Existem mais de 20 conceitos para definir uma espécie, e usar apenas a morfologia [a aparência do animal] não é o ideal para mamíferos”, diz Flávia Miranda, professora da pós-graduação em ciência animal da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Basta pensar nos seres humanos: somos diferentes vistos de fora, mas ainda assim pertencemos a uma única espécie.

Um bom jeito de saber se os lobos da Colossal se distanciaram o suficiente dos lobos-cinzentos atuais seria usar o conceito biológico de espécie: animais que só conseguem produzir descendentes entre si. Com o detalhe importante de que os filhotes precisam ser férteis (por exemplo: um ligre, que é uma mistura de leão com tigre, é estéril, então não pode ser considerado uma espécie nova). Mas vamos ter que aguardar, já que, por ora, a Colossal não tem planos de cruzar seus lobos.

No futuro, dependendo dos avanços tecnológicos, nada impede que a Colossal ou qualquer outro laboratório venha a criar um animal indistinguível de um ser ancestral, mesmo que apenas em alguns critérios. Mas será que essa é uma estratégia válida para salvar a biodiversidade do planeta?

Ilustração, colorida, de pássaros dodô diante de uma catedral. Vê-se palmeiras, ao fundo, e uma pessoa caminhando, em primeiro plano.
Da família dos pombos, o dodô sumiu das Ilhas Maurício no século 17, quando virou a refeição predileta dos colonizadores europeus (e dos cães e gatos que levaram consigo).Ana Kozuki/Superinteressante

Um estranho no ninho

Fundado em 1872, Yellowstone (EUA) é o mais antigo parque nacional do mundo. Com uma área de quase 9 mil km² (seis vezes a cidade de São Paulo), ele abriga centenas de espécies de clima temperado.

No século 20, o lobo-cinzento desapareceu de Yellowstone – cortesia da caça excessiva, sobretudo pelo próprio governo americano. Sem predadores, a população de alces explodiu. Eles comiam toda a vegetação local e não sobrava nada para animais menores, como castores e pássaros. O parque entrou em desequilíbrio ecológico, e foram necessárias décadas de esforço para reintroduzir os lobos e tudo voltar ao normal.

O caso de Yellowstone é uma das inspirações para a pesquisa de lobos-terríveis da Colossal, que acredita que as próximas gerações de Rômulos e Remos têm potencial para agir de modo parecido. E a empresa não é a única que pensa assim.

De acordo com o guia de princípios da IUCN para pesquisas com proxies, restaurar ecossistemas é de fato um dos possíveis benefícios de estudos do tipo. Além disso, o órgão também cita o impacto econômico (quem não torraria a poupança para ver um dodô de perto?) e a chance de ajudar espécies que ainda não desapareceram: graças às pesquisas sobre o mamute, a Colossal vem desenvolvendo uma vacina contra um tipo de vírus da herpes que ataca elefantes. 

Legal. Mas tem um problema: a lista de desvantagens dos proxies é bem maior. Em vez de ajudar, um novo animal pode desequilibrar ainda mais o meio ambiente.

“É um efeito borboleta: você altera o gene de um animal, e isso pode interferir em outro que não tem nada a ver com a história”, diz o pesquisador Ítalo Esposti Poly da Silva, do Centro de Química Medicinal (CBMEG) da Unicamp. “Se é uma espécie que sumiu há cinco, dez anos, talvez faça sentido [reintroduzi-la]. Mas qual o espaço para um bicho que sumiu há 10 mil anos?”

Também é preciso considerar as condições às quais são submetidas as cobaias. “O habitat dos animais ancestrais não é mais o mesmo, os bichos que eles caçavam já não existem mais. A temperatura e a luminosidade do planeta mudaram”, diz  Brandão. Qual o limite ético de colocar proxies (e suas barrigas de aluguel) sob estresse?

Outro argumento contrário diz que a desextinção pode enfraquecer outros esforços de conservação. “Anula a poderosa mensagem de que a extinção é para sempre”, diz a IUCN. Não é preciso ir muito longe para observar essa falácia na prática. “Se vamos ficar angustiados com a perda de uma espécie, agora temos a oportunidade de trazê-la de volta”, disse em abril Doug Burgum, secretário do Interior dos EUA. “Escolha sua espécie favorita e ligue para a Colossal.”

A serviço dos ameaçados

Apesar do marketing exagerado, as pesquisas da Colossal não deixam de ser instigantes. Editar vários genes de mamífero ao mesmo tempo e realizar uma clonagem bem-sucedida é pra lá de complexo. “As técnicas já existiam, mas eles tiveram boas sacadas de como combiná-las”, diz Ítalo Silva. E, por mais que encher a Sibéria de mamutes talvez seja uma furada, a biologia molecular pode ajudar (e muito) espécies ameaçadas.

Por meio do Instituto Tamanduá, Flávia Miranda é uma das idealizadoras do projeto “Arca Xenarthra”, o primeiro biobanco de xenarthras (a superordem dos tamanduás, tatus e preguiças) do mundo. “Eles são alguns dos mamíferos mais antigos do planeta, exclusivos da América Latina e muito sensíveis a mudanças climáticas”, ela explica.

São mais de 500 amostras de material genético que podem guiar os esforços de conservação. Análises do genoma da preguiça-de-coleira, por exemplo, identificaram populações consanguíneas que, agora, podem voltar a se relacionar graças a um corredor ecológico que une trechos antes isolados de mata nativa.

Ilustração, colorida, de dois policiais montados em rinocerontes em cima de uma faixa de pedestre.
Restam só duas fêmeas de rinocerontes-brancos-do-norte no mundo. Elas são monitoradas em uma reserva no Quênia, e há laboratórios tentando fertilizá-las.Ana Kozuki/Superinteressante

Além disso, entender genes associados a determinadas doenças, comportamentos e hábitos alimentares também fornece pistas para que os cientistas consigam reintroduzir uma espécie que ainda existe em regiões onde ela sumiu. Ou seja: dá para desextinguir localmente um animal que ainda não desapareceu por completo.

Os biobancos também podem ajudar a aumentar a variabilidade genética. Em uma população ameaçada, que vai perdendo indivíduos, os parentes acabam cruzando entre si. Em termos evolutivos, isso é péssimo. “Leva a más-formações, problemas reprodutivos e abortos”, diz Gediendson Ribeiro de Araújo, professor da pós-graduação em ciências veterinárias da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

Especialista em onças-pintadas, Araújo é um dos responsáveis por um banco com amostras de sêmen desse animal. Os espermatozoides de uma onça podem ser usados para inseminar exemplares de outras regiões – e, assim, aumentar a diversidade de genes.

Mais recentemente, Araújo também passou a coletar outros tipos de células capazes de, um dia, servir para clonagem. A ideia não é produzir cópias em massa, mas agir em casos específicos, como clonar onças catalogadas que morreram atropeladas ou em queimadas. Seria uma forma de evitar que a genética desses animais fosse perdida por causa da ação humana.

Dos 5 bilhões de espécies que já habitaram o planeta, 99,9% foram extintas – mas foram raras as ocasiões em que o planeta perdeu biodiversidade com a rapidez de agora. A ONU estima que, hoje, 1 milhão de espécies estejam ameaçadas. Metade delas pode sumir até 2050. Não temos como fazer nada pelos animais que já se foram, mas salvar os que ainda estão aqui é o melhor jeito de honrá-los.

Fontes (1) artigo “Complete genomes reveal signatures of demographic and genetic declines in the woolly mammoth”; (2) artigo “Dire wolves were the last of an ancient New World canid lineage”; (3) artigo “On the ancestry and evolution of the extinct dire wolf”. Agradecimento Renan Vinícius de Araújo, pesquisador do CQMED (Unicamp) e da Universidade de Oxford.

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Sou Augusto de Paula Júlio, idealizador do Tenis Portal e do Curiosidades Online, tenista nas horas vagas, escritor amador e empreendedor digital. Mais informações em: https://www.augustojulio.com.