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Curiosidades

O que está por trás da revolta Gen Z no Nepal

Há 800 anos, o Planeta Azul vive sob um regime autoritário. Tudo começou com 20 famílias reais, que se uniram para derrubar o Grande Reino e criar o Governo Mundial.

Os descendentes dessas famílias, conhecidos como dragões celestiais, são corruptos que fazem questão de esbanjar luxo. Cometem atrocidades – mas saem impunes.

Um dos líderes da resistência é o pirata Luffy, que nunca tira o seu chapéu de palha – a bandeira da sua tripulação, aliás, é uma caveira sorridente com o tal adereço. Luffy despreza os dragões e desafia o império em nome da liberdade.

Esse é um breve resumo de OnePiece, o mangá mais vendido de todos os tempos. Lançado em 1997, inspirou um anime (que já tem mais de mil episódios), uma série na Netflix – e protestos mundo afora.

Pois é: na Indonésia, a caveira de Luffy foi usada em marchas contra a escassez de água e eletricidade. No Marrocos, a bandeira apareceu em passeatas contra a saúde precária.

No começo de setembro, outra manifestação hasteou a caveira de One Piece. No Nepal, milhares de jovens da Geração Z saíram às ruas contra o governo e colocaram o país de cabeça para baixo.

Em dois dias de protesto, 70 pessoas morreram e mais de 300 prédios foram incendiados. O primeiro-ministro renunciou e a esposa de outro ex-primeiro-ministro foi queimada viva em sua própria casa.

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Milhares de documentos que estavam guardados em prédios públicos também foram queimados. Grande parte deles eram acordos internacionais e projetos de lei que nunca haviam sido digitalizados.

O estopim das manifestações foi o banimento das redes sociais no país. Mas essa é só uma fração da história. Há uma série de problemas mal-resolvidos que explicam a fúria da juventude nepalesa. Hora de entender o que vem acontecendo no pé do Everest.

Em 2024, o mon- tanhismo rendeu ao Nepal R$ 30,68 milhões – 75% disso foi graças ao Everest.Sansubba/Getty Images

No princípio

Há 225 milhões de anos, toda a porção terrestre do planeta estava unida num só bolo: a Pangeia. As atuais Índia e Austrália viviam lado a lado, no sul desse supercontinente, banhadas pelo antigo Oceano Tétis.

Com a fragmentação da Pangeia, a Índia se tornou uma grande ilha que rumava em direção à Eurásia (o naco do norte da Pangeia). Entre 50 milhões e 40 milhões de anos atrás, as placas eurasiana e indiana se chocaram. Na linha de colisão, enormes blocos de terra se acumularam e foram empurrados para cima.

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Assim nasceu a Cordilheira do Himalaia, coroada pelo Monte Everest, de 8.849 metros – o ponto mais alto da Terra a partir do nível do mar. Os humanos modernos chegaram no pé das montanhas há 30 mil anos (1), inaugurando o início de uma longa história de ocupação e migração no local.

O Nepal fica entre duas grandes potências. Ao norte, faz fronteira com a China via região autônoma do Tibete. Ao sul, com a Índia, o que contribui para fortes vínculos étnicos e linguísticos entre os dois. Embora o Monte Everest seja uma (grande) fronteira natural entre o Nepal e a China, a influência sobre o território nepalês ainda é significativa, tanto em aspectos ideológicos quanto econômicos.

A origem do nome “Nepal” é incerta. A palavra existe pelo menos desde o século 4 d.C., já que textos indianos da época se referem ao local assim. Entre as explicações linguísticas, alguns estudiosos sugerem que deriva das palavras em sânscrito (língua ancestral do Nepal e da Índia) Nipa (pé da montanha) e alaya (morada): “morada ao pé da montanha”. Mas pode ser que tenha surgido do idioma dos indígenas Newar, criadores da civilização do vale nepalês ou do povo lepcha.

O Nepal tem 147,5 mil quilômetros quadrados, o tamanho do Ceará. O território funciona como uma escadinha, dividida em três cinturões. Nos platôs mais baixos estão as maiores cidades – inclusive a capital, Katmandu, onde vivem 3 milhões de pessoas na região metropolitana (o país tem 29,6 milhões de habitantes; cerca de 78% deles vivem em zonas rurais) (2).

Katmandu fica em um vale de mesmo nome – e é lá onde boa parte da história do Nepal se desenrola.

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Mapa do Nepal.
Himal é a região montanhosa com neve da Cordilheira do Himalaia. Pahad ainda faz parte da região montanhosa, mas geralmente sem neve. É cheia de vales, inclusive o da capital, Katmandu. Já Terai faz parte das planícies baixas do sul, a parte fértil do país.Arte/Superinteressante

Tempos sombrios

O Nepal nunca foi colonizado por potências estrangeiras. Mas isso não significa que tudo correu às mil maravilhas.

Ao longo dos séculos, os nepaleses enfrentaram conflitos com seus vizinhos. No final do século 18, o Nepal entrou em guerra com o Império Qing, da China, depois que os Gurkhas, uma força militar nepalesa, invadiram o Tibete por disputas comerciais. Apesar de avanços iniciais, os chineses contra-atacaram e, após um impasse militar, a guerra terminou com um acordo.

As fronteiras sul também deram dor de cabeça. No início do século 19, a expansão nepalesa levou a um conflito com a Companhia Britânica das Índias Orientais (a empresa que representava os interesses da Coroa britânica na região).

A guerra foi marcada por combates em terrenos montanhosos, onde os britânicos enfrentaram forte resistência das tropas nepalesas. No fim, o Nepal perdeu territórios. Mas o desempenho dos soldados nepaleses levou à posterior inclusão dos Gurkhas no exército britânico e ao apoio nepalês à Inglaterra nas duas Guerras Mundiais.

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Nada se compara, porém, aos (vários) conflitos internos. Por mais de 2 mil anos, o vale permaneceu sob o domínio de diversas dinastias. A última assumiu em 1846, com um massacre no palácio do então rei Shah.

O guarda-costas do rei, Jung Bahadur Rana, com seus irmãos e aliados, assassinou membros influentes do conselho real e da corte e tomou o poder. Ele se autoproclamou primeiro-ministro e instaurou um regime autoritário, reduzindo o monarca a uma figura meramente simbólica, enquanto concentrava todo o poder em suas mãos.

Rana introduziu o Muluki Ain, o código nacional de conduta que buscava regular todos os aspectos da vida em sociedade. Suas normas iam desde proibições curiosas – como a que impedia membros de castas inferiores de soltar pum na presença de castas superiores – até as cores e proporções exatas de como a bandeira do Nepal deveria ser confeccionada, incluindo uma fórmula matemática paradesenhá-la corretamente.

A bandeira nepalesa, diga-se, é a única no mundo que não tem formato retangular. Ela é composta de dois triângulos sobrepostos, que remetem tanto às montanhas quanto a um pagode (um tipo de templo; não confundir com o estilo musical).

Com os Rana, o cargo de primeiro-ministro, bem como outros postos importantes do governo, passavam de geração em geração na família. Além do nepotismo, a dinastia também manteve o Nepal em situação análoga ao feudalismo: até meados do século 20, o país era uma sociedade pré-industrial pouco globalizada. Escolas, hospitais, estradas e indústrias eram raridade, bem como serviços públicos e de telecomunicações.

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Tabela, em fundo vermelho, com a linha do tempo das dinastias que governaram o Nepal.
<span class=”hidden”>–</span>Arte/Superinteressante

As consequências dessa época são visíveis até hoje: a água potável do país é escassa, e a energia elétrica ainda falha na maioria dos dias. A fonte de sustento vem do turismo do Everest e, sobretudo, das remessas dos nepaleses que vivem no exterior: um terço do PIB do Nepal vem do dinheiro enviado pelos imigrantes para casa (3).

Os Ranas caíram em 1951, quando Tribhuvan, da dinastia Shah, assumiu o trono e restaurou o poder real. Em seguida, seu filho Mahendra promulgou uma Constituição e convocou as primeiras eleições democráticas do país em 1959. B. P. Koirala venceu e tornou-se o primeiro-ministro do Nepal.

Em 1960, porém, Mahendra deu um golpe, dissolveu o Parlamento e instaurou o sistema Panchayat, sem partidos. Foi só em 1990 que o rei Birendra, que governava na época, cedeu à pressão popular e restaurou a democracia multipartidária.

A eleição parlamentar de 1991, no entanto, ainda previa a monarquia. Isso enfureceu o Partido Comunista do Nepal, que se alinhava com os princípios de ​Mao Tsé-Tung, líder da Revolução Chinesa. O partido, então, deu início a uma nova revolta.

A guerra civil

Em 1996, os maoístas frustrados com os limites da democracia do Nepal lançaram a chamada “Guerra Popular”. Eles movimentaram as áreas rurais ao ressaltar a defesa dos direitos dos camponeses e outros grupos excluídos. Com isso, o movimento ganhou enorme apoio popular, mas também foi alvo da repressão estatal, sobretudo após o governo enquadrá-lo como “terrorista”.

O conflito entre governistas e revolucionários durou dez anos e deixou 17 mil mortos. O impasse abriu caminho para negociações. Em 2006, um acordo encerrou a guerra e deu início à transição para uma república democrática.

Em 2008, a monarquia acabou de fato. A República Democrática Federal do Nepal foi proclamada e uma Assembleia Constituinte foi eleita para elaborar a nova Constituição.

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Mas haja demora. Foi só em setembro de 2015, após anos de impasses, que o governo enfim promulgou a o documento. A nova Constituição dividiu o país em sete províncias federais e reconheceu a diversidade étnica, linguística e religiosa do local.

Existem mais de 125 etnias no Nepal. O idioma oficial é o nepalês, mas há pelo menos uma dúzia de outras línguas com um número expressivo de falantes. Quanto à religião, 81,2% da população é hinduísta, 8% são budistas (o Nepal é tido como a terra natal de Buda) e 5%, muçulmanos.

Imagem da Estupa de Boudhanath e bandeiras de oração em Katmandu, Nepal.
A estupa de Boudhanath, Patrimônio da Unesco, é um dos templos budistas mais sagrados do mundo. Reza a lenda que o dedo de Buda estaria dentro do local.Arsgera/Getty Images

Apesar das mudanças, grupos minoritários se sentiram sub-representados com a nova Constituição. Some isso à guerra civil e à demora do governo para chegar a um documento final, e o resultado foi uma profunda decepção da sociedade civil – em especial, os mais jovens. A esperança da revolução deu lugar à desconfiança nos partidos.

A falta de mudanças concretas, em adição ao trauma de um grave terremoto em 2015 (que matou quase 9 mil pessoas) e aos impactos da Covid-19, criou um terreno fértil para a frustração. Nesse turbilhão é que as manifestações atuais emergiram.

GenZ vs. Governo

O Vale de Katmandu concentra a maioria dos escritórios e sedes administrativas do Nepal. Segundo um estudo (4), é uma das áreas metropolitanas de crescimento mais acelerado do Sul da Ásia – nas últimas três décadas, a área urbana da capital aumentou 123,97% e a taxa de expansão é de 6,5% ao ano.

A prosperidade econômica, porém, é desigual. Nos últimos dez anos, desde a Constituição, surgiram os primeiros bilionários nepaleses (a maioria, enriquecida pela política). A concentração de renda aumentou, e os herdeiros das elites, apelidados de nepo babies (“bebês do nepotismo”, em português), tornaram-se cada vez mais desinibidos em esbanjar privilégios nas redes sociais. Alô, One Piece.

Os nepaleses também tiveram de lidar com escândalos de corrupção e aumento no desemprego (para jovens de 15 a 24 anos era de 20,8% em 2024) (5). Quem conseguiu, saiu do país: 7,5% da população vivia no exterior em 2021 (6). No ano passado, 870 mil pessoas deixaram o Nepal em busca de trabalho (7).

A insatisfação atual se concentrou no primeiro- -ministro, KP Oli, acusado de autoritarismo, repressão a dissidentes e corrupção. Esse desgaste empurrou o país para o 96º lugar no Democracy Index, ranking da revista The Economist que mede o estado da democracia ao redor do mundo (8). A lista tem 167 países – quanto mais baixa a posição, mais autoritário o regime (o Brasil, para fins de comparação, está em 57º).

No dia 4 de setembro deste ano, o governo do Nepal fechou 26 plataformas de mídia social – incluindo Facebook, Instagram, LinkedIn, Snapchat, WhatsApp, X e YouTube – por não estarem de acordo com as novas regras do Ministério da Comunicação e Tecnologia da Informação. O órgão exigia das empresas uma licença e um representante que pudesse resolver reclamações in loco.

O Nepal é jovem: metade da população tem até 25 anos, e o país apresenta uma das maiores taxas per capita de uso de redes sociais do sul da Ásia. Por isso, o bloqueio levantou temores sobre seus efeitos na liberdade de imprensa, no turismo e, sobretudo, na comunicação das famílias com parentes que trabalham no exterior.

O governo alegou combater a desinformação, o discurso de ódio e as fraudes. Para os jovens, foi censura. Nas redes, cresciam discussões que expunham o nepotismo e os privilégios da elite política.

Quatro dias depois, no dia 8, milhares de pessoas tomaram as ruas do Vale de Katmandu. Sem liderança formal, a mobilização cresceu até chegar às portas do Parlamento Federal. A polícia respondeu com gás lacrimogêneo, canhões de água, balas de borracha e munição real.

No dia seguinte, os protestos se espalharam pelo país e ficaram mais violentos. Prédios governamentais foram incendiados, como o Supremo Tribunal e as residências do presidente e do primeiro-ministro, além de sedes de partidos e delegacias. Diante do caos, KP Oli renunciou.

“Se você cala a sociedade por muito tempo, ela explode em violência”, diz Emiliano Unzer, professor de História da Ásia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Em meio ao caos, surgiram vozes defendendo a restauração da monarquia, mas não era isso que a maioria queria. No dia 10, manifestantes e militares encontraram um caminho inusitado. Por meio de um servidor na plataforma Discord chamado “Juventude Contra a Corrupção”, a população organizou uma votação online que elegeu a ex-presidente da Suprema Corte, Sushila Karki, como primeira-ministra interina.

“Eles estão lutando pela própria democracia, sempre lutaram por ela”, acrescenta Unzer. As novas eleições estão marcadas para 2026. Resta saber se toda a insatisfação se transformará em um projeto político capaz de reconquistar a confiança de uma geração descrente – uma tarefa mais difícil que escalar o Everest.

Fontes: (1) “The Prehistory of Nepal (A summary of the results of 10 years research, 1984–1994)”, Gudrun Corvinus, 2004; (2) “Nepal – Rural Population (% of total population) in 2025”, Banco Mundial; (3) “Personal Remittances, Received (% of GDP) – Nepal, 2024”, World Bank; (4) “Evaluating Urban Growth Patterns of Kathmandu in Fragile Geographies of the Middle Himalayas”, D Tiwari e A Kumar, 2025; (5) “Youth Unemployment Rate for Nepal”, World Bank; (6) “International Migration in Nepal Report”, Census Nepal / Central Bureau of Statistics, 2021; (7) “Nepal’s Gen Z Reckoning”, Feyzi Ismail e outros, 2025; (8) “Democracy Index 2024”, The Economist Intelligence Unit, 2025.

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augustopjulio

Sou Augusto de Paula Júlio, idealizador do Tenis Portal, Tech Next Portal e do Curiosidades Online, tenista nas horas vagas, escritor amador e empreendedor digital. Mais informações em: https://www.augustojulio.com.