O que são os hormônios – e o que você deve saber para não cair em armadilhas
Farinelli foi um dos mais lendários cantores de ópera da história. “Lendário” ao pé da letra: ele viveu no século 18 – e, por isso, não há uma única gravação de sua voz. Só existem descrições: um vocal penetrante, rico e limpo, atingindo notas incrivelmente agudas para um homem adulto. Como tantos outros sopranos italianos da época, Farinelli era um castrato: um cantor que removeu os testículos quando criança, para manter a voz aguda pelo resto da vida.
A voz de um menino pode ficar até uma oitava mais grave após a puberdade. Isso se deve ao aumento da produção de testosterona, responsável pelas características sexuais masculinas. Com a castração, os meninos não passavam pela enxurrada hormonal da adolescência.
A técnica funcionava, mas ninguém sabia como. Os hormônios só seriam descobertos entre o final do século 19 e o início do século 20. Hoje, sabemos que a falta de testosterona gera muito mais problemas do que só um vozeirão – como impedir o nascimento de pelos e do pomo de adão e fazer os ossos crescerem por mais tempo que o normal.
Esse é só um dos exemplos de como a humanidade já dava um jeito de manipular os hormônios muito antes de conhecê-los. Quando passaram a ser estudados pela ciência como a compreendemos, a partir da primeira década do século 20, esses mensageiros do corpo se tornaram promessa de cura de doenças e rejuvenescimento.
Não era uma promessa vazia: o poder de controlar nossos hormônios realmente revolucionou a medicina. Aumentou a qualidade de vida de pessoas na menopausa, permitiu um melhor planejamento familiar com os anticoncepcionais e possibilitou o tratamento de doenças como o diabetes.
Nos últimos anos, porém, essa área se tornou terreno fértil para alegações pseudocientíficas e para a promoção do uso arriscado de anabolizantes, vendidos como implantes ou “chips da beleza”. Os pacientes não estão expostos ao perigo só nas redes sociais, mas também dentro dos consultórios, nas mãos de médicos que se dizem especialistas em hormônios mas nunca fizeram especialização em endocrinologia. Para não cair nessa armadilha, é preciso, antes de tudo, entender o que são os hormônios.
Cartas do corpo
Os hormônios são moléculas mensageiras. Eles saem principalmente das glândulas do sistema endócrino (como tireoide, hipófise e pâncreas) e viajam pela corrente sanguínea. Ao passarem pelos órgãos, essas moléculas se conectam a células especializadas, como uma chave que encontra a fechadura certa. Se a porta não abrir, é porque a mensagem não era para aquele órgão. Mas, se rolar o encaixe, a célula obedece à sinalização da molécula.
Enquanto os impulsos nervosos são notificações instantâneas, os hormônios funcionam meio como cartas: demoram mais para chegar ao destino. Imagine que você está na mesa com um belo estrogonofe à frente. Você já comeu uma pratada, mas está delicioso e o cérebro implora pela segunda.
Nesse momento, suas células do intestino estão liberando hormônios que promovem a saciedade, como o peptídeo YY e a colecistocinina. Eles viajarão pelo sangue até chegar ao hipotálamo, sinalizando que é hora de parar de comer. Basta esperar alguns minutos e o impulso de repetir já não parecerá tão tentador – é só confiar no delay.
O sistema endócrino regula a liberação de hormônios por meio dos chamados ciclos de feedback. Pense em um ar-condicionado: ele tem um termostato que determina por conta própria quando é hora de ligar e desligar o aparelho para manter a sala na temperatura determinada pelo usuário. A capacidade do corpo humano de regular a si mesmo com base nos sinais que ele próprio emite, sem interferência externa, é chamada homeostase.
A graça dos hormônios – e uma das proezas do sistema endócrino – é que cada um deles geralmente carrega mais de uma mensagem. A testosterona, por exemplo, estimula o crescimento dos músculos ao entrar em contato com as células desse tecido. Quando chega ao cérebro, causa maior irritabilidade e inquietação. Já na pele, ela aumenta a acne, o crescimento de pelos corporais e a queda de cabelo. Em suma, cada célula interpretará a molécula de um jeito diferente.
Do ponto de vista evolutivo, essa é uma maneira bastante eficaz de desencadear uma reação complexa no corpo. Pense nos seus ancestrais, cara a cara com um predador faminto. O medo incita a liberação de adrenalina, que se comporta tanto como neurotransmissor quanto como hormônio.
Essa molécula se liga às células do fígado, estimulando a produção de glicose e dando um boost de energia para que a pessoa possa lutar ou correr. Ao mesmo tempo, ela aumenta a respiração e a pressão sanguínea, fornecendo oxigênio para os músculos agirem rápido. A adrenalina favorece até a coagulação, para evitar que o indivíduo perca muito sangue caso seja ferido em uma briga.
(Hoje em dia, é mais comum que a adrenalina aumente em momentos de estresse, como no trabalho ou no trânsito. Já que não há como extravasar, esse monte de alterações fisiológicas se traduz em ansiedade. Resultado de um mecanismo ancestral tentando lidar com o mundo atual.)
Mais de 70 hormônios já foram identificados nos humanos – com novos sendo descobertos e detalhados a cada ano. Eles são divididos em três tipos [veja o quadro abaixo]. Melatonina, adrenalina e dopamina, por exemplo, são hormônios de moléculas pequenas, que derivam de um único aminoácido. Já o segundo grupo, o dos hormônios polipeptídicos, inclui moléculas grandes compostas de vários aminoácidos, como a insulina e o GLP-1.

A maioria dos hormônios conhecidos são polipeptídicos, mas é o terceiro grupo que geralmente está nos holofotes: o dos esteroides. O que caracteriza essa classe é a presença de uma estrutura orgânica chamada ciclopentanoperidrofenantreno. A lista inclui os hormônios sexuais (como a testosterona e a progesterona) e outros como a aldosterona, que cuida dos níveis de sódio e potássio no sangue.
Ao longo do século 20, descobrimos que era possível isolar essas moléculas e injetá-las, manipulando artificialmente a central de correios do corpo. Foi o início do uso de hormônios como medicamentos.
Uma nova medicina
No século 19, ter diabetes tipo 1 era uma sentença de morte. As pessoas que nasciam com a doença definhavam ao longo da infância, e raramente chegavam à vida adulta. Apesar de comerem muito, o corpo dessas crianças não absorvia energia dos alimentos. Todo o açúcar ingerido saía na urina – daí o nome diabetes mellitus, uma referência ao xixi com gosto de mel.
O organismo geralmente libera insulina para lidar com os altos níveis de açúcar no sangue após uma refeição. Esse é o hormônio que carrega a mensagem “ei, célula, tem um monte de combustível aqui no sangue, pode usar”. As pessoas com diabetes, no entanto, produzem pouquíssimo ou nada de insulina. Sem esse mensageiro, as células não deixam o açúcar entrar.
O prêmio Nobel de Medicina de 1923 foi entregue ao médico que resolveu o problema. Experimentos já haviam mostrado que cães sem pâncreas desenvolvem diabetes. Portanto, aquilo que faltava nos diabéticos, o que quer que fosse, estava sendo produzido ali. Frederick Banting descobriu uma maneira de extrair insulina do pâncreas de um cachorro saudável, e então injetá-la em pacientes com diabetes. Funcionou.
Por muito tempo, os frascos de insulina foram extraídos dos pâncreas de animais; hoje o hormônio é produzido em laboratório por bactérias geneticamente modificadas. O tratamento do diabetes foi a primeira aplicação clínica séria da endocrinologia – e uma das mais importantes.
Com o passar dos anos, descobriu-se que os receptores hormonais (as “fechaduras”, na metáfora de antes) não se conectam só aos hormônios produzidos no corpo – eles também respondem a moléculas parecidas com eles. Hoje, os diabéticos podem tomar análogos da insulina, desenvolvidos para que tenham uma absorção mais rápida e de maior duração no corpo, entre outras características.
As moléculas análogas a hormônios foram essenciais para o avanço dos métodos contraceptivos. A primeira pílula anticoncepcional foi desenvolvida em 1960 a partir de moléculas sintéticas que faziam cover da progesterona, chamadas progestinas. Elas impedem a ovulação – e, portanto, a gravidez.
A pílula anticoncepcional foi uma revolução social: o medicamento contribuiu para a inserção das mulheres no mercado de trabalho, permitindo que elas tivessem controle sobre quando engravidar. A questão é que, como vimos antes, os hormônios se ligam a mais de um tipo de célula, e cada uma delas interpreta a mensagem de formas diferentes. Daí vêm diversos efeitos colaterais, como náuseas, dores de cabeça, acne, ganho de peso e trombose.
Após 60 anos de pesquisa clínica e desenvolvimento de moléculas, hoje existem dezenas de opções de métodos hormonais seguros, que vão do dispositivo intrauterino (DIU) a adesivos e anéis vaginais. A maioria deles é composta de progestinas e estrogênios.

O trunfo mais recente da endocrinologia são os análogos do hormônio GLP-1, usados para o tratamento de diabetes e obesidade. GLP-1 é sigla para “peptídeo semelhante ao glucagon-1”, um hormônio que é produzido naturalmente no intestino após uma refeição. Ele manda o pâncreas aumentar a produção de insulina, fala para o estômago segurar a comida por lá (aumentando a sensação de saciedade) e avisa o hipotálamo que não precisamos mais sentir fome.
Os análogos ao GLP-1 – como a semaglutida presente no Ozempic e a tirzepatida do Mounjaro – são eficazes contra o diabetes tipo 2. Essa é a versão da doença em que o corpo até consegue produzir insulina, mas a dose liberada não dá conta de todo o açúcar no sangue. Ao estimular o pâncreas a excretar mais desse hormônio, os análogos ao GLP-1 contribuem para diminuir o nível de açúcar no sangue.
Mas não é só isso. Justamente pelo fato de aumentarem a sensação de saciedade, esses medicamentos também foram testados e aprovados para o tratamento de obesidade e sobrepeso. “Quando bem usada, essa classe de remédios muda a vida das pessoas”, diz Alexandre Hohl, endocrinologista e diretor da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica.
O problema (como ocorre com boa parte dos tratamentos com hormônios) é o mau uso. Até junho deste ano, esses medicamentos podiam ser comprados nas farmácias sem retenção de receita. “O número de pessoas que usam sem necessidade é avassalador. Começa a ter um fenômeno de meninas jovens que, usando esse remédio, passam a ter distúrbios alimentares”, diz Hohl. Sem um acompanhamento médico contínuo, o usuário que toma o remédio não saberia identificar algum efeito colateral raro, como a pancreatite.
Segundo um estudo apresentado à Anvisa, 73% dos usuários de análogos ao GLP-1 não receberam orientação profissional. A plataforma de vigilância da agência, VigiMed, registrou um alto número de efeitos adversos relacionados ao uso off-label desses medicamentos no Brasil, superior aos dados globais (1). Por isso, agora, eles só podem ser vendidos com receita. “A necessidade de receita deve diminuir o problema – mas sempre vão ter médicos ruins para prescrever a quem não precisa”, diz Hohl. E isso não acontece só com as canetas emagrecedoras. Chegou a hora de falar dos hormônios mais mal prescritos da atualidade.
Homem com H
Se você acompanha influencers nas redes sociais, talvez já tenha ouvido alegações sobre tomar testosterona: ela ajuda na perda de peso, define os músculos, melhora o raciocínio, aumenta a libido… O discurso não é novo. Na verdade, algo parecido já rolava no século 19, quando surgiu uma prática exótica chamada organoterapia.
Tudo começou em 1889, quando um médico e cientista francês alegou ter descoberto o elixir da juventude. Aos 72 anos, Charles-Édouard Brown-Séquard injetou em si mesmo uma mistura feita de sangue, sêmen e outros líquidos extraídos dos testículos de cães. Ele discursou para médicos na Academia de Ciências em Paris afirmando que tinha ganhado mais força, energia e concentração.
Brown-Séquard foi visto com desconfiança pelos colegas, mas seu discurso sedutor acabou se espalhando uns anos depois – e logo, em vez de ministrar o extrato macabro, os pretendentes de Peter Pan apelaram para os testículos em si. “Nos anos 1910 e 1920 houve uma febre na Europa de transplante de testículos de animais. Não havia as técnicas de transplante que existem hoje, então aquilo não tinha efeito algum”, diz Lucas Tramontano, pesquisador em Saúde Coletiva e autor do livro Testosterona: a biografia de um hormônio.
O cirurgião Serge Voronoff foi o precursor da técnica bizarra. Homens da elite europeia faziam fila em sua clínica para receber testículos de macacos. A cirurgia virou tema de uma marchinha de Carnaval brasileira em 1928, chamada “Seu Voronoff”. E foi assim que a testosterona acabou associada a virilidade, crescimento dos músculos e energia.
Há um fundo de verdade na história, é claro. A testosterona e seus derivados (como nandrolona e trembolona) são queridinhos dos fisiculturistas e marombeiros porque estimulam a produção de proteínas necessárias para o crescimento dos músculos. Injetar esse hormônio é o que se chama popularmente de “tomar bomba”.
A questão é que há uma grande diferença entre repor algo que está faltando (o caso dos diabéticos com a insulina) e suplementar um hormônio que seu corpo já produz muito bem, obrigado. Homens que usam anabolizantes para aumento de massa muscular diminuem sua produção de espermatozoides, e podem sofrer consequências graves se fizerem isso constantemente.
“Tem chance do homem que faz ciclos anabolizantes atrofiar os testículos, desligar completamente o eixo gonadotrófico [que conecta a hipófise e o hipotálamo aos testículos], e nunca mais produzir testosterona por conta própria”, diz Hohl, que é autor de um dos principais livros médicos sobre o tema. “Nesses casos, eles vão precisar repor testosterona pelo resto da vida.”
O Conselho Federal de Medicina (CFM) proíbe o uso de anabolizantes para fins estéticos, já que não existem estudos que garantam a segurança dessas drogas (2). O coração, por ser um músculo, também está suscetível à hipertrofia – o que aumenta as chances de arritmias e insuficiência cardíaca. Os esteroides sexuais também aumentam a produção de glóbulos vermelhos, espessando o sangue e gerando risco de trombose (3).
Existe um único caso de indicação de testosterona em homens, segundo as diretrizes de entidades médicas. É quando o paciente não produz níveis adequados do hormônio naturalmente, uma condição chamada hipogonadismo. Os sintomas incluem disfunção erétil, perda de massa óssea e muscular e diminuição no crescimento de pelos. Nesse caso, o paciente pode fazer uma reposição de testosterona com dosagens controladas e acompanhamento médico.
A quantidade considerada normal em homens é de 300 a 1.000 nanogramas de testosterona por decilitro (ng/dL), o que pode variar bastante dependendo da idade e da composição corporal. Numa reposição por hipogonadismo, os níveis de um homem que produz 200 ng/dL aumentam para 500 ng/dL, por exemplo.
Outro caso legítimo de reposição hormonal é em mulheres na menopausa. Por volta dos 50 anos elas sofrem uma queda drástica – porém normal – na produção de estradiol e progesterona. Essa fase começa com a última menstruação, e geralmente vem acompanhada de sintomas como ondas de calor e insônia.


Uma das funções do estradiol é conservar a massa óssea. Se a mulher chega à menopausa com uma densidade óssea baixa, ela fica mais suscetível à osteoporose. “Ela começa a perder massa óssea em torno de 2%, 3% ao ano”, diz a endocrinologista Ruth Clapauch, diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). Daí a recomendação.
Algumas mulheres chegam à menopausa com bom condicionamento físico construído ao longo da vida e não sentem os sintomas típicos dessa fase. Elas podem optar por não fazer a reposição e seguir com a vida normalmente. Para a maioria das mulheres, no entanto, a reposição de estradiol e progesterona aumenta a qualidade de vida e previne acidentes.
E os homens, não deveriam fazer reposição de hormônios na velhice? Apesar de haver uma diminuição gradual, eles não passam por uma queda abrupta na produção dos hormônios sexuais. “Não é algo universal, como ocorre com a mulher por volta dos 55 anos”, diz Clapauch. “Entre 60 e 70 anos, só 20% dos homens têm níveis baixos de testosterona. Entre 70 e 80 anos, 30%. Acima dos 80 anos, metade continua com níveis normais.”
A queda na produção de hormônios é natural – faz parte do envelhecimento. Mas a busca por rejuvenescimento faz com que homens de meia-idade procurem tomar testosterona mesmo quando estão com níveis normais. E nem é preciso recorrer ao mercado ilegal para isso: não faltam médicos dispostos a ignorar as recomendações do CFM para lucrar em cima da busca pelo corpo ideal.
Bomba gourmet
Karina Porto chegou ao ginecologista com uma queixa de infecções urinárias recorrentes. O médico recomendou que ela fizesse uma “modulação hormonal”, pois estaria com os hormônios baixos. Karina explicou que tinha apenas um rim, mas ele garantiu que não haveria problema.
“Ele já veio com um discurso pronto”, diz Karina. “Me convenceu, disse que eu ia ficar com a pele rachada com o tempo, que teria envelhecimento precoce. Me botou um terror, e eu aceitei.” Em um implante subcutâneo de farmácia de manipulação, o médico prescreveu estradiol, testosterona, gestrinona (um anabolizante sintético) e metformina (usado para tratar diabetes tipo 2).
Um mês e meio após a inserção, ela havia engordado 12 kg e desenvolvido acne e pelos no rosto. Menos de uma semana depois, Karina teve um infarto no seu único rim, causado por trombose. No hospital, ela foi informada que deveria retirar o implante, pois a gestrinona potencializa o efeito da testosterona. O problema é que ela havia colocado um implante absorvível, que libera o composto ao longo de 6 meses e é difícil de retirar. Karina ainda teve hemorragia, endometriose e um edema pulmonar. O médico não ofereceu suporte nem acompanhou a paciente ao longo das complicações.
Os implantes manipulados ficaram conhecidos popularmente como “chips da beleza”. Seu principal componente costuma ser a gestrinona, uma molécula sintética derivada da progesterona, que só é aprovada pela Anvisa para o tratamento de endometriose, por via oral. Por ser um esteroide anabolizante, ela caiu nas graças de quem quer cortar caminho para emagrecer e ganhar músculos.
Karina também não tinha indicação alguma para o uso de testosterona. Aliás, os endocrinologistas só pedem exame de dosagem de testosterona em mulheres quando se suspeita que esse hormônio esteja alto, e não baixo. Os níveis normais em mulheres variam de 15 a 60 ng/dL.

“Só existe uma situação em que se faz um teste terapêutico de testosterona em mulheres: o distúrbio do desejo sexual hipoativo, quando há uma queda total de libido”, diz Hohl. Mesmo nesses casos, é preciso descartar outras justificativas: hipotiroidismo, uso de antidepressivos e problemas no relacionamento. Karina, diga-se de passagem, nunca teve essa queixa.
Os endocrinologistas desconfiam que o implante da paciente tenha liberado muita testosterona e gestrinona de uma vez só. Não existem estudos de segurança e eficácia de implantes hormonais manipulados.
Na ausência de estudos, também não há como as farmácias de manipulação imprimirem uma bula do medicamento. Esse recurso é importante para que os médicos saibam quais são os efeitos de cada dose, e qual porcentagem de pacientes desenvolve cada efeito indesejado. Esses dados só são obtidos por meio de estudos clínicos randomizados em uma população diversa. O único implante autorizado pela Anvisa no Brasil é o anticoncepcional Implanon, que libera etonogestrel.
Em 2024, a Anvisa proibiu o uso de implantes hormonais para fins estéticos – e também de fazer propaganda deles, o que era muito comum nas redes sociais. Os médicos agora são obrigados a incluir o CID da doença na receita, notificar eventos adversos e informar sobre os riscos dos implantes. Os pacientes, bem como as farmácias de manipulação, devem assinar um termo de responsabilidade e esclarecimento.
“O propósito da farmácia de manipulação seria customizar uma prescrição específica, para quem não pode tomar comprimidos, por exemplo […] Mas elas acabaram se transformando em indústrias, que produzem em série e têm planta de fábrica”, diz Clayton Macedo, endocrinologista e diretor da SBEM. Ele trata pacientes como a Karina, e lidera um projeto de pesquisa que visa reportar efeitos adversos dos implantes hormonais.
Qual seria a razão para a prescrição massiva de implantes que nem sequer têm registro na Anvisa? Segundo Hohl, “só existe um motivo: dinheiro”. As farmácias de manipulação vendem os implantes diretamente aos médicos, por algo entre R$ 400 e R$ 800. Por sua vez, esses profissionais inserem os tubinhos em suas próprias clínicas, cobrando valores que chegam a R$ 7 mil.
Muitos deles se anunciam como especialistas em hormônios, mas não fizeram residência em endocrinologia (uma das 55 especialidades médicas regulamentadas no Brasil). Em vez disso, eles utilizam o termo “hormonologia” – que não é reconhecido pela Associação Médica Brasileira como uma área de atuação.

Qualquer pessoa formada em medicina pode prescrever hormônios ou outras drogas, independentemente de ter feito residência médica. Existem diversos cursinhos de fim de semana sobre hormônios – alguns oferecidos pelas próprias farmácias de manipulação. Eles são uma via fácil (e antiética) de os médicos lucrarem sem terem feito os quatro anos de residência em endocrinologia.
Existe até uma Associação Brasileira de Hormonologia (ASBRAH), que promove congressos patrocinados por farmácias de manipulação. O curso de hormonologia a distância oferecido pela associação inclui módulos de marketing, vendas e conversão, e até aspectos jurídicos. A ASBRAH não respondeu a nossos questionamentos sobre o objetivo desses módulos até a conclusão desta edição.
Não é difícil encontrar esses médicos na internet. Uma pesquisa no Google por “implante hormonal” mostra diversos posts patrocinados. São clínicas que prometem tratamento para libido baixa, dificuldade para emagrecer e ganhar músculo, fadiga, indisposição e insônia. Sintomas que podem se aplicar a qualquer trabalhador exausto – coisa que não falta no Brasil de 2025. Fique de olho: reza a lenda que, dois milênios atrás, o imperador chinês Qin Shi Huang se matou aos 49 anos com pílulas de mercúrio que prometiam ser o elixir da vida eterna. Não mudou muita coisa desde então.
Referências: (1) Medicamentos agonistas GLP-1 só poderão ser vendidos com retenção da receita; (2) Resolução CFM nº 2.333/2023; (3) artigo “Androgenic anabolic steroid abuse and the cardiovascular system”
Fontes: Deborah Beranger, endocrinologista; vídeo “From Castration to Cure: How Scientists Discovered Hormones With Brutal Experimentation”; podcast In Our Time.
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