Nona Arte #2: entenda a narrativa única das HQs com esses 3 desenhistas
Na primeira parte desta série de três matérias em que eu combino definições de linguagens, gêneros e escolas para ilustrar o que faz a estrutura narrativa dos quadrinhos ser algo único, usei o trabalho de três roteiristas — Alan Moore, Brian Bendis e Jonathan Hickman — para destacar como o uso de combinado de expressões com estilos e técnicas podem oferecer uma maneira de contar histórias que só pode ser construída na Nona Arte.
- Nona Arte #1: entenda a narrativa única das HQs com esses 3 roteiristas
- Entenda os elementos que diferem os quadrinhos de outros gêneros
Agora é a vez de mostrar como os desenhistas manipulam o desenvolvimento da trama por meio de vários elementos que só funcionam nos quadrinhos. Na verdade, o progresso do repertório de técnicas e recursos de narrativa gráfica ganharam mais ferramentas por uma necessidade de controle do tempo e do espaço das ações que os paineis precisam para contar a trama com clareza e mais detalhes.
O texto nos quadrinhos costuma conduzir o enredo, e a narrativa gráfica normalmente orienta a ação, o movimento, a localização, a atmosfera e a noção de tempo decorrido em cada momento que conecta os paineis em uma sequência inteligível e lógica — mesmo quando a maneira de transmitir as informações não seja tão simplória e organizada.
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Então, vamos nessa, cada um dos três desenhistas abaixo são monstros da indústria que ajudaram a desenvolver um jeito tão peculiar e próprio dos quadrinhos. Vale lembrar que alguns são também roteiristas, só que a genialidade no uso de elementos gráficos é que realmente fizeram desses autores nomes consagrados.
E como esta série de matérias celebra o poder que os quadrinhos têm de combinar elementos de várias linguagens e gêneros, aí vai mais uma setlist para escutar enquanto lê o texto.
Will Eisner
Bem, fica difícil falar sobre quadrinhos com quem não quer ou gosta sem Will Eisner é considerado o Avô dos quadrinhos. o autor extrapolou e desconstruiu toda a noção que tínhamos sobre Narrativas Gráficas.
Para começar, Eisner foi quem introduziu o jeitão diferente de apresentar nas histórias e na capa e nas primeiras páginas da revista. Nessa época o artista estabeleceu um novo patamar de narrativa gráfica com muito mais ferramentas e técnicas de storytelling.
Em seus livros técnicos, você pode notar como Eisner organizou a herança de outras linguagens e estudo de Semiótica em um leque de opções imenso, desde as caracterização de tipos de personagens por meio de estereótipos clássicos e instintivos da percepção humana até a sua maior contribuição: os recursos que manipulam o olhar do leitor na construção de uma narrativa com espaço e tempo única dos quadrinhos.
Vamos aos exemplos. Veja a arte abaixo de Eisner:

Note como Eisner inteligentemente usa os balões, o conteúdo do texto, os movimentos e expressões dos personagens e a composição da própria ilustração como um todo para manipular nosso olhar e nossa noção de tempo decorrido entre uma coisa e outra.
E ao mesmo tempo, observe novamente de mais longe, e vai perceber que aquilo é mesmo o que era no começo: apenas um apanhado de ilustrações estáticas, que, sem os recursos que estão nos detalhes que citei acima, não ofereceria nenhuma dinâmica de tempo.
E veja que ele fez isso sem nem mesmo usar uma divisória de painel com espaço em branco, que costuma ser o “campo de exercício mental” para nossa mente criar a sequência até o quadro seguinte.
Agora veja outro exemplo abaixo, de No Coração da Tempestade:

Tinha uma habilidade incrível de navegar por sequências paralelas à história principal e três planos de narrativa, inclusive se aprofundando por algum subplot e retornando para o desenvolvimento principal. “Como funciona isso na prática?”
Observe nas duas páginas que a conversa começa em uma “câmera” mais distante, que onde vão acontecer alguns movimentos informações complementares, enquanto os dois amigos ficam brisando sobre os efeitos da Segunda Guerra Mundial.
Um deles fica observando a movimentação externa. Ou seja, há uma segunda camada que envolve o plano narrativo do rapaz em silêncio olhando pela janela, e uma terceira lá fora, onde estão as casas e habitantes do local. Eisner conta uma história que se conecta no final a partir de todas as pequenas cenas que apareceram durante o rolê.
Eisner era um gênio, e jamais será esquecido, principalmente pelo fato de ele ter organizado e ilustrado como dois dos maiores gênios do DC.
Frank Miller da fase boa
O Frank Miller de começo de carreira era um cara sensacional. Ele usava arte-final com traços bem leves e finos, a partir da influência de artistas franco-belgas. E mais: arrisco em dizer que ele aproveitou sua rápida ascensão como um autor que, ao produzir uma série limitada de Wolverine nos anos anos 1980, encontrou espaço para desafiar o manual padrão de narrativa que a Marvel Comics sempre distribui para seus artistas.
O chamado Marvel Way of Drawing Comics prevê que as sequências de ação e de personagens se movendo sempre use o ápice da parábola do movimento. Isso é possível ver em muitas capas antigas da Era de Prata dos Quadrinhos e também em splash pages internas, ou em momentos mais importante do desenvolvimento do enredo.
Ok, e como o artista faz isso? Bem, na época do lançamento da minissérie do Wolverine, no começo dos anos 1980, alguns artistas, a exemplo de nosso Gustavo Machado e de Miller, inspiravam-se pelo estilo de narrativa dos japoneses, e não somente em mangás.

Para alinhar o ritmo da narrativa com a própria trama, que se passa no Japão, Miller desenha as garras de Wolverine como se fossem lâminas de espadas Samurai. Os movimentos de ação em lutas ou aparições surpreendentes com a representação gráfica no auge da parábola é alterada.
Enquanto o Marvel Way of Drawing prega que se coloque os movimentos sempre nos 90 graus da parábola de movimento, Miller “atrasou” e “acelerou” para causar os mesmos efeitos de um samurai já no término do golpe de espada enquanto um bambu despedaça, por exemplo.

Miller também usa muitas vezes em sua passagem pelo Demolidor e em Sin City recursos parecidos
com os que Bernard Krigstein introduziu uma narrativa inovadora ao quebrar os padrões de paineis sequenciais ao acelerar e diminuir a velocidade e o ritmo dos eventos, de forma que os “campos de exercício criatividade” — os espaços em branco entre os paineis — possam sugerir sons em nossas mentes, mesmo onomatopéia nenhuma.
Ele também usou esses recursos em Batman: O Cavaleiro das Trevas, e outras obras. Infelizmente, nos trabalhos pós-Sin City ele deixou para trás o que de melhor tinha para apostar em um estilo muito exagerado e até inconsistente.
Chris Ware
Ware tem um estilo limpo, forte e honesto; nenhuma linha está ali à toa em meio a cores fortes . Suas propostas narrativas usam elementos universais de comunicação urbana, com uma composição de paineis e signos linguísticos capazes até de codificar parte de seu conto em subtextos que questionam a vida urbana moderna.
O autor gosta de brincar com nosso olhar sobre o cotidiano solitário e silencioso em torno de estruturas simétricas e polidas, muitas vezes até opressoras. Há sempre uma certa ironia em torno de caracterizações aparentemente lúdicas e até infantis, quando, na verdade, essa aparente simplicidade visual com uso de poucas linhas, serve como chamariz para uma reflexão a respeito dos relacionamentos da virada do século XX.

Em muitas de suas histórias, há uma certa brincadeira com memórias afetivas e recursos de outras linguagens, com os de croquis de projetos arquitetônicos, videogames, manuais de uso e até jogos de tabuleiro e placas de trânsito.
Seu trabalho é quase hipnótico, pois, como a síntese de Ware é poderosa com relação ao enredo quase sempre silencioso, fica difícil parar de olhar para suas sequências até o fim do livro — tudo bem que, assim como todos os artistas geniais de autobiográficos da turminha de editoras alternativas como Fantagraphics e Drawn & Quaterly, suas histórias costumam ser tão deprê que depois de ler você precisa de um abraço.
Até daqui duas semanas!
Bem, já deu para notar até aqui que há coisas que só podem mesmo ser transmitidas textualmente e graficamente, em simbiose, por meio dos quadrinhos. Essa é a beleza que destaco nesta série de três matérias que pode ajudar muitos dos que não consegue compreender a linguagem dos quadrinhos a sacar melhores maneiras curtir e avançar na leitura
DAQUI 15 DIAS, EM NONA ARTE #3: entenda a narrativa única das HQs com esses 3 arte-finalistas.
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Leia a matéria no Canaltech.
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