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Curiosidades

Tortura, prisões e fogueiras: como a Inquisição atuou no Brasil

Bruxas queimando em fogueiras enquanto uma multidão de camponeses assiste, ou hereges torturados com dispositivos macabros da Europa medieval. Essas são, provavelmente, as cenas que vêm à sua cabeça quando você lê a palavra “Inquisição”.

Nada disso está errado, claro. Mas o fato é que uma grande parte da história da Inquisição aconteceu depois da Idade Média, e não ficou restrita ao Velho Mundo: o tribunal das heresias atuou inclusive aqui, em Pindorama. Durante todo o período colonial, a Igreja Católica denunciou, perseguiu, torturou e condenou à morte brasileiros por “crimes” como feitiçaria, homossexualidade e judaísmo. 

Segundo dados compilados pela historiadora Anita Novinsky, mais de mil colonos e colonizados do território que hoje é o Brasil foram levados para Lisboa para a etapa final dos seus julgamentos, e pelo menos 20 deles acabaram queimados na fogueira. Outros tantos milhares foram denunciados e perseguidos, e o clima de medo imposto pela Inquisição assombrou todos os moradores da colônia, independentemente da classe social. 

O que conhecemos genericamente como Inquisição foi um fenômeno que assumiu muitas formas ao longo de seus séculos de existência. Os primeiros tribunais surgiram na França no século 12 e se espalharam pela Europa nos próximos séculos de maneira descentralizada, sob a anuência e a orientação do Vaticano. Essa é a chamada Inquisição Medieval.

A Península Ibérica ficou em grande parte de fora dessa fase, mas, por sua vez, protagonizou a segunda etapa da Inquisição, já na Era Moderna. Aqui, o foco não era perseguir bruxas.

Em comum, é claro, há o fato de que ambas combatiam as tais heresias – um termo guarda-chuva para qualquer conduta que não se encaixa na doutrina católica (e que, ironicamente, tem origem etimológica em uma palavra grega que significa “escolha” ou “agir por conta própria”). 

Em 1497, o rei Manuel I proibiu o judaísmo em Portugal. Os judeus que negaram abandonar sua fé foram mortos ou expulsos; os que ficaram eram reunidos em grandes grupos e batizados à força. Num minuto eram judeus – no outro, pelo menos no papel, cristãos.

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Nasceu daí uma nova divisão legal: os “cristãos-velhos” eram os portugueses nascidos em famílias historicamente cristãs. Já os “cristãos-novos” eram os judeus convertidos (à força) e seus descendentes, mesmo após muitas gerações. 

Mesmo que em teoria fossem aceitos pelo governo, na prática os cristãos-novos eram perseguidos e oprimidos pelas autoridades seculares e religiosas, já que pairava a desconfiança de que essas famílias não tinham abandonado o judaísmo de verdade e continuavam a praticar sua fé secretamente, o que era um pecado gravíssimo. (Isso, como veremos, realmente acontecia com alguns, mas mesmo aqueles que assumiram o catolicismo de verdade eram discriminados.)

Em 1536, com o aval do rei João III e do papa Paulo III, foi oficialmente instaurado em Portugal o Tribunal do Santo Ofício, o órgão dedicado a perseguir e julgar hereges – com foco em caçar os cristãos-novos acusados de “judaizar”, mas também com o objetivo de sentenciar outras condutas consideradas heréticas. Nascia a Inquisição Portuguesa.

Manual de instruções

A Inquisição lusitana se inspirou bastante na sua irmã espanhola, estabelecida décadas antes, e que entrou para a história por sua brutalidade ímpar. O Santo Ofício português se dividia em sucursais: o tribunal de Coimbra tinha jurisdição sobre o norte do país; o de Évora, sobre o sul; já o tribunal de Lisboa cobria a própria capital.

Com exceção do Tribunal de Goa, que foi instituído na Índia portuguesa, Portugal não estabeleceu sedes da Inquisição nas suas colônias – ao contrário do que fez o Império Espanhol, que tinha tribunais no Peru, na Colômbia e no México. Mas seus territórios na América e na África não ficaram de fora do processo: o Tribunal de Lisboa também era responsável por coletar denúncias e julgar os casos das colônias. 

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Em suas primeiras décadas de existência, a Inquisição pouco influenciou o Brasil – a própria colonização engatinhava, diga-se. 

No final do século 16, porém, a Igreja começou a se preocupar em estabelecer seu poder também no Novo Mundo, visto ainda como um “lugar sem Deus”. Vieram, então, as chamadas “visitações”: o tribunal de Lisboa mandava agentes oficiais para representar a instituição na Terra de Santa Cruz. Por anos, esses representantes viajaram pelo território da colônia, coletando denúncias e caçando hereges.

Funcionava assim: de Portugal, a Igreja divulgava editais sobre quais eram as práticas proibidas e como denunciá-las. Esses documentos eram lidos pelos padres locais em toda a colônia e fixados nas portas das igrejas. Quando o inquisidor chegava na região, todos eram incentivados a denunciar casos de heresia – do contrário, podiam ser considerados cúmplices. Quem já sabia que seria dedurado acabava tomando a iniciativa de se autodelatar, a fim de diminuir a pena.

A Inquisição apostava num intenso clima de medo e vigilância constante – vizinhos denunciavam vizinhos, pais acusavam filhos, irmãos entregavam irmãs. Também era uma oportunidade para tentar se livrar de desafetos, claro, inventando um podre sobre um inimigo local. 

<span class=”hidden”>–</span>Malu Menezes/Superinteressante
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Nem toda denúncia virava processo. Algumas questões menos graves eram resolvidas localmente. Rolava uma espécie de triagem, e os casos mais graves eram enviados para Portugal, já que, oficialmente, não havia tribunal por aqui.

Em Lisboa, eles eram presos, interrogados e, muitas vezes, torturados (a tortura em processos inquisitoriais foi autorizada inclusive por uma bula publicada pelo papa Inocêncio IV, ainda em 1252). Também havia depoimentos de testemunhas. Todo o processo ocorria a portas fechadas – mas, para alegria dos historiadores, era detalhadamente registrado por escrivães.

Quase ninguém era absolvido. O mais comum era o réu acabar confessando para tentar diminuir a pena, fosse ele culpado ou inocente. Durante todo o processo, os bens dos acusados permaneciam confiscados (o que, muitas vezes, incluía a tomada dos escravizados africanos e indígenas – na época, pessoas eram posses). Era assim que a Inquisição custeava suas operações.

A etapa final era o chamado “auto de fé”: a leitura pública da sentença e a execução da punição – que sempre rolava em público, para alimentar o medo na população. As penas podiam ser cadeia, chibatadas, penitências religiosas, “degredo” (outro nome para exílio, geralmente para as colônias ou de uma colônia para outra) e, claro, a morte pela fogueira, a mais grave e rara de todas. 

Com um detalhe: a Inquisição, oficialmente, não matava ninguém – afinal, a vida é sagrada, não é mesmo? A Igreja “só” entregava o preso para o poder secular, do Estado, com uma espécie de recomendação de que se ministrasse a pena capital. Quem acendia o fósforo, então, não eram religiosos: eles só encomendavam a morte. 

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Ao longo de três séculos, houve pelo menos três visitações oficiais do Santo Ofício no Brasil. Cada uma durou alguns anos e passou por algumas regiões diferentes do nosso território. Nos intervalos entre elas, porém, a Inquisição não parava. Havia os “comissários”: membros do clero local, em sua maioria padres, que não integravam oficialmente os tribunais inquisitórios, porém colaboravam com eles.

Mais tarde, a Inquisição foi ampliando sua estratégia: passou a habilitar agentes civis, sem nenhum conhecimento eclesiástico, para coletar denúncias e decidir quais processos seriam abertos. Esses homens eram chamados de “familiares” da Inquisição. Segundo o historiador Aldair Rodrigues, da Unicamp, geralmente eram comerciantes e outras pessoas de classe média que possuíam algum poder financeiro, mas não muito status social. Elas não eram remuneradas, mas tinham alguns benefícios, como redução de impostos. Esses alcaguetes acabavam assumindo a figura de xerifes, respeitados e temidos. 

Aldair ainda explica que, para ser um familiar, era necessário comprovar a “pureza de sangue” – a Igreja investigava os antepassados dos candidatos para garantir que não havia judeus, muçulmanos, negros ou indígenas na família. Receber esse certificado aumentava o prestígio do indivíduo na sociedade colonial altamente racista, é claro.

Com esses agentes “terceirizados”, a Inquisição conseguiu penetrar de forma impressionante na colônia, inclusive em áreas remotas, onde a própria colonização era incipiente, como no Centro-Oeste e no Sul do País. Foi assim que os julgamentos ganharam força no século 17.

A partir da metade do século 18, porém, a Inquisição começa a perder força. Manter a estrutura era custoso e complexo, e as revoluções liberais da época, como a Francesa e a Americana, criticavam o poder da Igreja e reforçavam a separação entre Estado e fé. O Marquês de Pombal, um importante estadista português conhecido por várias reformas iluministas, foi um dos principais responsáveis por enfraquecer a perseguição católica.

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O Tribunal do Santo Ofício foi oficialmente abolido em 1821. Toda a papelada dos milhares de processos acabou arquivada na Torre do Tombo, em Portugal, e só nas últimas décadas que essa coleção foi estudada com afinco por historiadores – uma parte razoável desses documentos ainda precisa de análises cuidadosas. Por isso, o número de denunciados e perseguidos pode ser ainda maior.

Pecados inomináveis

Quando a perseguição às famílias de origem judaica começou em Portugal no século 16, muitos migraram para o recém-colonizado território colonial na América. Aqui, formaram uma importante parcela das forças que construíram o Brasil em suas primeiras décadas. Alguns se tornaram ricos comerciantes e senhores de engenho.

Muitas dessas famílias praticavam o que os pesquisadores chamam de criptojudaísmo – uma versão clandestina do judaísmo, baseada em tradição e memória. Alguns até mantinham esnogas (sinagogas clandestinas) em suas propriedades. Quando o Tribunal chegou aqui, muitos acabaram denunciados por pequenos “deslizes”, como o descanso mandatório aos sábados ou não cozinhar com banha de porco.

Alguns casos são emblemáticos. A cristã-nova Ana Rodrigues foi presa aos 80 anos em 1593, durante a primeira visita da Inquisição. Moradora do Recôncavo Baiano, era matriarca de uma grande e influente família, e mantinha o criptojudaísmo vivo entre seus descendentes.

Levada para Lisboa, morreu na masmorras antes de ser julgada – o cárcere, você pode imaginar, tinha péssimas condições de higiene e alimentação, especialmente para uma idosa. Mesmo assim, o processo continuou. Dez anos depois da sua morte, foi condenada à fogueira postumamente pelo crime de judaizar. Seus ossos foram desenterrados e queimados em praça pública; toda a sua descendência foi amaldiçoada.

A maioria dos brasileiros julgados pela Inquisição, e quase todos os executados, eram cristãos-novos. Mas outras heresias também foram alvo de perseguição. A bigamia – manter dois casamentos – era um crime grave, mas trivial entre portugueses que deixavam uma família na metrópole e formavam outra na colônia.

Outra infração comum era a “sodomia” – qualquer ato sexual fora dos moldes cristãos, o que incluía relações entre pessoas do mesmo sexo ou mesmo penetração anal em casais héteros. Essas denúncias estão, inclusive, separadas em arquivos chamados “Cadernos do Nefando” (“nefando” significa “aquilo que não deve ser nomeado”, por ser tão horrível aos olhos da Igreja).

Um caso emblemático foi o da portuguesa Felipa de Souza, moradora da Bahia. Durante a primeira visitação da Inquisição em Salvador, em 1591, essa costureira de 35 anos foi acusada de manter relações sexuais com outras mulheres, apesar de casada com um homem. Questionada, admitiu ter tido seis parceiras em oito anos.

Normalmente, um caso assim seria encaminhado para o tribunal de Lisboa. Mas o primeiro inquisidor enviado ao Brasil, Heitor Furtado de Mendonça, quebrou o protocolo e decidiu ele mesmo julgar e realizar alguns autos de fé na colônia. Felipa foi sentenciada publicamente dentro de uma igreja em Salvador, enquanto segurava uma vela. 

Condenada, acabou açoitada em público, fez penitências espirituais e depois foi exilada de Salvador – mas não antes de pagar todas as custas do processo, incluindo a vela que segurou. Não há informações sobre o que aconteceu com ela após o exílio. Hoje, Felipa é um símbolo do movimento LGBT.

Ilustração, colorida, de uma mulher de cabelos compridos segurando uma vela, caminhando dentro de uma igreja.
<span class=”hidden”>–</span>Malu Menezes/Superinteressante

Queimem as bruxas

A execução de supostas feiticeiras em fogueiras, tão associada à Inquisição, de fato ocorreu, mas era mais comum nos países do norte da Europa, com destaque para a Alemanha. O fenômeno da caça às bruxas ganhou força após a publicação do Malleus Maleficarum, o “Martelo das Bruxas”: um manual para identificar e perseguir as feiticeiras satânicas – e, vale dizer, um dos livros mais misóginos da história.

Por aqui, as acusações de feitiçaria se concentravam principalmente em pessoas negras, indígenas e mestiças que mantinham suas tradições religiosas – muitas vezes, sincretizadas com o cristianismo vigente. A repressão incidia sobre amuletos de vários tipos, chás feitos com ervas medicinais, parteiras, benzedeiras etc. Essa foi a gênese do racismo religioso que ainda existe no Brasil contra crenças de matriz africana.

Apesar de alguns homens também serem denunciados, a bruxaria era um crime essencialmente feminino. Há registros de pelo menos 15 processos inquisitoriais contra mulheres em Lisboa, a maioria delas negra ou indígena. O número de denúncias, por sua vez, era muito maior.

Ilustração, colorida, em fundo azul, de um ritual religioso de origem africana. Vê-se quatro mulheres reunidas diante de algumas oferendas e velas acesas no primeiro plano.
<span class=”hidden”>–</span>Malu Menezes/Superinteressante

Uma dessas denúncias foi estudada pela historiadora Carolina Rocha em sua dissertação de mestrado. Num documento enviado do Brasil para Lisboa em 1760, o jesuíta Manuel da Silva relata a confissão de duas escravizadas, Joana e Custódia, que admitiram fazer parte de um sabá no Piauí colonial, formado por mulheres africanas, indígenas e mestiças.

“Sabás”, no imaginário católico europeu, eram encontros noturnos de bruxas em que supostamente rolavam sacrifícios, orgias e invocações do demônio. Essa era uma acusação grave – e bem rara, diga-se, já que a maioria das denúncias era contra indivíduos, não grupos. Os documentos também listam blasfêmias das duas mulheres, como xingar Jesus e Maria, exaltar o Diabo e até açoitar a figura de Cristo no mesmo local onde os escravos eram punidos por seus senhores.

Só temos acesso ao documento de acusação, então não dá para saber o quanto disso foi inventado ou exagerado pelo jesuíta. É provável que o “sabá” em questão nada mais fosse que um encontro para realizar algum ritual de origem indígena ou africana.

As tais blasfêmias, porém, não são de todo improváveis: fariam sentido como revolta contra a escravidão e demonstração de resistência perante a opressão religiosa. “É uma lógica do tipo: se em nome de Deus estão cometendo as maiores barbaridades do mundo, e o senhor do engenho tem uma cruz no brasão, então esse Deus não me representa”, explica Carolina. Nessas circunstâncias, o Diabo, propagandeado como o poderoso e temível inimigo do Deus católico, podia parecer um bom aliado.

Na época de Joana e Custódia, a Inquisição felizmente já estava enfraquecida. Bastou que ambas fizessem declarações de arrependimento, e a denúncia não virou um processo real. Mas esse e outros casos permanecem como lembretes doloridos de como funciona a vida quando o dogmatismo religioso borra as fronteiras entre o Estado e a fé: pessoas escravizadas e catequizadas em nome do Deus alheio são condenadas a uma vida de segredos, paranoia e humilhação pelo pecado de serem quem são.

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Sou Augusto de Paula Júlio, idealizador do Tenis Portal e do Curiosidades Online, tenista nas horas vagas, escritor amador e empreendedor digital. Mais informações em: https://www.augustojulio.com.